Universidade Estadual Paulista – UNESP
Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação
Departamento de Comunicação Social
Os múltiplos formatos narrativos do documentário transmídia para
dispositivos convergentes
Denis Porto Renó
Bauru - SP
Maio/2015
Universidade Estadual Paulista – UNESP
Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação
Departamento de Comunicação Social
Os múltiplos formatos narrativos do documentário transmídia para
dispositivos convergentes
Denis Porto Renó
Pesquisa financiada pelo edital Primeiros
Projetos,
processo
0242/001/2014PROPe, com a participação do bolsista de
iniciação científica João Victor Belline
Correia.
Bauru - SP
Maio/2015
“A interface do Renascimento foi o
encontro do pluralismo medieval e a
homogeneidade
e
mecanicidade
modernas”
Marshall McLuhan
“New new media give their users the
same control over when and where to
get text, sound, and audiovisual content
as provided by new media”.
Paul Levinson
Imagens
Imagem 1: Capa sobre Lula na Veja ................................................................ 33
Imagem 2: Metáfora da Interface (SCOLARI, 2004, p.74) ............................... 36
Imagem 3: Interface Windows 7N .................................................................... 37
Imagem 4: Interface Mac OS Lion .................................................................... 37
Imagem 5: Canal TELETEXTO - TVE .............................................................. 38
Imagem 6: Interface Facebook ......................................................................... 39
Imagem 7: Interface comunicadora instantânea Skype.................................... 39
Imagem 8: Canal do livro Executive severance no Twitter ............................... 43
Imagem 9: Big-data, formato proposto por Lev Manovich ............................... 44
Imagem 10: Interface produzida pelo aplicativo Thinglink.com ........................ 47
Imagem 11: Experiência sobre cinema interativo (RENÓ, 2011). .................... 49
Imagem 12: A space of time, de Diego Bonilla. ................................................ 50
Imagem 13: Interface tátil de um tablet iPad .................................................... 51
Imagem 14: Interface principal documentário “Calles perdidas”....................... 56
Imagem 15: Problema de ajuste de interface para dispositivos Apple. ............ 57
Imagem 16: Livro documentário transmídia Morreu o Demo, acabouse a
peseta. ............................................................................................................. 58
Imagem 17: Pôster sobre personagens do documentário transmídia. ............. 59
Imagem 18: Interface do documentário Galego-português. ............................. 61
Imagem 19: Interface com exposição das fotografias. ..................................... 62
Imagem 20: Comic produzido para o documentário. ........................................ 63
Imagem 21: Cena do documentário Tras los pasos del hombre bestia (2013). 65
Imagem 22: Ações pela cidade para promover o videogame online. ............... 66
Imagem 23: Sequências que representam transições imagéticas por camadas.
......................................................................................................................... 68
Imagem 24: Sequência com intertextualidade em Hollow. ............................... 68
Imagem 25: Nós neurais para conteúdos complementares internos às cenas. 69
Imagem 26: Cena com tabela para participação e retroalimentação em Hollow.
......................................................................................................................... 70
Imagem 27: Intertextualidade e Twitter para narrar a tempestade. .................. 71
Imagem 28: Cena com imagem de autoria da entrevistada. ............................ 72
Imagem 29: Distribuição de conteúdos horizontais por Adobe Muse ............... 78
Imagem 30: Portal de notícias Niiiws. .............................................................. 79
Imagem 31: Reportagem transmídia Radio Semillas – la voz de Iraca. ........... 81
Imagem 32: quadrantes de informação visual .................................................. 82
Imagem 33: Página principal da reportagem .................................................... 83
Imagem 34: Reportagem .................................................................................. 83
Imagem 35: Texto sobre a reportagem ............................................................ 84
Imagem 36: mapa do metrô de Madri. ............................................................. 87
Imagem 37: Produção de documentários a partir de dispositivos móveis. ....... 90
Imagem 38: Modelo de interface com estudo de quadrante. ........................... 92
Imagem 39: Interface documentário Rolling Stones in my life (2015). ............. 96
Imagem 40: Interface responsiva acessada desde um iPhone. ....................... 97
Imagem 41: Interfaces simples do Rolling Stones in my life (2015). ................ 98
Imagem 42: Página do documentário Rolling Stones in my life (2015) no
Facebook.......................................................................................................... 99
Imagem 43: Interface do documentário Centrinho – autonomia para a vida
2015). ............................................................................................................. 100
Imagem 44: Página oficial do Centrinho. ........................................................ 101
Imagem 45: Aplicativo Google Maps na página do documentário.................. 101
Imagem 46: Página com informações sobre o projeto. .................................. 102
Figura
Figura 01: Roteiro circular rizomático (RENÓ, 2011). ...................................... 13
SUMÁRIO
1. Introdução ...................................................................................................... 9
2. Definições e métodos ................................................................................... 18
2.1. Metodologia ................................................................................. 18
2.2. Parâmetros .................................................................................. 22
2.2.1. Interatividade ........................................................................ 22
2.2.2. Cross-media versus transmídia ............................................ 24
2.2.3. Ambientes Touch .................................................................. 26
2.2.4. Usuários táteis ...................................................................... 27
3. Interface como linguagem ............................................................................ 30
3.1. Filosofia e pragmatismo .............................................................. 30
3.2. O poder do audiovisual ............................................................... 40
3.3. Textos e textos ............................................................................ 41
3.4. Multiplataforma ............................................................................ 45
3.5. A navegação interna ................................................................... 48
4. Documentário transmídia ............................................................................. 52
4.1. Orientações sobre o tema ........................................................... 52
4.2. Multi-hiper-trans .......................................................................... 55
4.3. Transmídia “analógico”................................................................ 57
4.4.Exploratório transmídia ................................................................ 60
4.5. Navegação territorial ................................................................... 64
4.6. Os nós neurais transmidiáticos no documentário Hollow ............ 66
5. Entre a mensagem e o usuário .................................................................... 74
5.1. Formatos de interfaces................................................................ 75
5.2. A mensagem na ponta do dedo .................................................. 77
5.3. Experimento sobre interface ....................................................... 82
5.4. Métodos de produção.................................................................. 89
5.5. Um novo documentário ............................................................... 94
Conclusões..................................................................................................... 103
Referências bibliográficas .............................................................................. 108
1. Introdução
O campo da comunicação vive inúmeras alterações desde o surgimento
da tecnologia digital e suas consequentes evoluções. A internet, os dispositivos
de comunicação móvel e os recursos digitais têm provocado na sociedade e na
prática
comunicacional
distintas
singularidades
que
contemplam
uma
característica fundamental e pós-moderna, de acordo com os conceitos de
Bauman (2001): uma sociedade líquida e individual. Esses novos espaços
conformam o que Paul Levinson (2012) denomina de maneira certeira os
“novos novos meios”, pois é diferente dos novos meios que conhecíamos. É
uma mudança substancial, visto pela última vez com o advento da prensa por
Gutenberg, segundo o próprio autor.
No campo do documentário, através dos dispositivos móveis, a produção
de conteúdos ganha força e se torna mais acessível e próximo do público,
especificamente pela capacidade de navegação por diversos espaços virtuais.
Pioneiro na história do audiovisual e conhecido como filme de realidade ou
imagens do povo, esse formato narrativo tem como capacidade a construção,
ou representação, da realidade, levando ao espectador informação e
conhecimento, o que pode significar emancipação cultural e social.
Porém, o documentário viveu momentos diversos em sua trajetória,
acompanhados de formatos narrativos e de técnicas diversas de linguagem,
assim como objetivos diferentes que justificavam e/ou provocavam essas
formas de fazer. Também foram direcionados por correntes teóricas e artísticas
diferentes para esses formatos, inclusive de maneira paralela ao cinema de um
modo geral, que foram de certa maneira justificados pelo desenvolvimento
tecnológico
naquele
momento.
Os
irmãos
Lumière
apresentaram
o
documentário ao mundo a partir de uma narrativa pura, inclusive sem definir o
próprio gênero, a própria existência, ao registrar na obra “L’Arrivée d’un Train
en Gare de la Ciotat” [Chegada do Trem na Estação de la Ciotat] a chegada do
trem à estação francesa (RENÓ, 2012). Naquelas sessões, os presentes
“interagiram” com o trem de maneira real, provocando pânico nos presentes.
Num segundo momento do documentário, e com um olhar tanto
tecnológico como de criação de linguagem, o russo Dziga Vertov apresentou
“O homem com a câmera” como uma sequencia de imagens construída a partir
da montagem, que naquele momento passou a ser uma tendência difundida
pela escola russa. Sua proposta foi a reconstrução da realidade (ou da ficção,
como ocorre no cinema que conhecemos) a partir da combinação de imagens
(RENÓ, CAMPALANS, RENÓ, 2015)), tendo como base conceitual a
experiência desenvolvida por outro russo, Lev Kuleshov (RENÓ, 2011), em sua
obra “A mulher ideal”, que apresentava uma sequencia de enquadramentos e
imagens para demonstrar uma mulher considerada perfeita para o realizador. A
mulher de Kuleshov nunca existiu, pois foi construída pela combinação de
partes de várias mulheres.
Numa mesma evolução tecnológica, Jean Rouch produziu obras como
“Le maitre fous”, onde atua com uma câmera de mão e som direto, ou seja,
registrou em vídeo de maneira simultânea ao registro do áudio. Na obra, Rouch
participa de uma cerimônia espiritual de uma aldeia africana e registra o transe
de um dos participantes de tal maneira que parecia estar em transe com ele.
Nascia naquele momento uma linguagem estética denominada como câmeraolho, linguagem de produção possibilitada pelo dispositivo “portátil” e pela
capacidade de registrar som e imagem ao mesmo tempo, o que era
fundamental para transmitir essa sensação de realidade.
Com a chegada da tecnologia VHS e em seguida o sistema digital, as
mudanças do documentário passaram a representar experiências inovadoras e
interessantes. O baixo custo desses dispositivos, em comparação com a
película de sal de prata, possibilitou obras como “O prisioneiro da grade de
ferro”, de Paulo Sacramento, construída a partir da edição de imagens
gravadas por presidiários reclusos na então Penitenciara do Carandiru , em
São Paulo. Sacramento reuniu um total de 120 horas de imagens gravadas
pelos presos e a partir disso criou um roteiro para a montagem final. Trata-se
de uma obra que tem como coautores os presos cinegrafistas.
Porém, em nenhum desses momentos a mudança no que diz respeito a
linguagem foi tão expressiva como depois da web 2.0, onde os cidadãos
passaram não somente a produzir, como também a distribuir os conteúdos
produzidos. Uma significativa parcela dessas produções foi realizada a partir de
telefones celulares e/ou câmeras fotográficas amadoras. Com essas inovações
de tecnologia e linguagem surge uma nova linguagem comunicacional: a
narrativa transmídia. A partir dela, tornou-se necessário estudar, experimentar
e interpretar os resultados da utilização da narrativa transmídia para a
construção de documentários.
Outra importante mudança na nova ecologia dos meios (Renó, 2013b)
refere-se ao modelo de exibição destes conteúdos a partir de dispositivos
móveis, onde o contato táctil com o conteúdo realiza propostas apresentadas
inicialmente por Norbert Wiener (1954) e posteriormente por Marshall McLuhan
(2005), para quem os meios de tecnologia eram extensão do nosso corpo. Com
telas tácteis, não só temos essa extensão como também podemos dispensalas, “colocando as mãos” no conteúdo disponível. Entretanto, o fator singular
neste cenário é a mobilidade, discutida por Marc Augé (2007) de maneira
antropológica, e por Paul Levinson (2012) por um viés da ecologia dos meios.
Na realidade, os processos da comunicação ganharam um novo aporte
a partir da web 2.0., especialmente com o surgimento dos blogs e de redes de
distribuição audiovisual, como o YouTube. Estes ambientes criaram o hábito no
cidadão em se informar a partir da internet, principalmente em ambientes que
ofereciam conteúdos multimídia e com estrutura interativa, mas também
passaram a ser ativos produtores de conteúdo, no que Levinson (2012) define
como comportamentos de cidadãos consumidores de conteúdo midiático que
também produzem. Com isso, modificou-se, também, o status do público,
inicialmente denominado receptor, agora usuário/participante (RENÓ, 2011), já
que os espaços virtuais oferecem a navegabilidade pelo conteúdo oferecido e a
alteração do mesmo a partir de comentários e mesmo a reconstrução de
conteúdos a partir de espaços colaborativos denominados ambientes Wiki
(CUNNINGHAM e LEUF, 2001) ou espaços reais-virtuais (AUGÉ, 2007).
Outra possibilidade com estes aportes tecnológicos tem sido a criação
ou exibição de conteúdos interativos, com uma reconstrução narrativa pessoal,
coautora (RENÓ, 2011) e, em alguns casos, ao simples “toque” no conteúdo
através de telas tácteis. Trata-se da materialização do conceito de Marshall
McLuhan (LEVINSON, 1999) sobre os meios de comunicação atuar como uma
extensão do corpo humano, com a atuação em ambientes touch screen. E essa
atuação fortaleceu a utilização de conteúdos audiovisuais para processos
comunicacionais, inclusive pelo poder cognitivo que possui a imagem em
movimento aliada a aspectos de som, luz e cor (BEDOYA e FRIAS, 2003) e
pelo surgimento de um novo hábito televisivo, on demand, em que os usuários
assistem o que querem, quando e como querem, cenário esse sinalizado
anteriormente por Lorenzo Vilches (2003) como uma tendência midiática.
Nestes novos espaços e linguagens se potencializa o conceito de
narrativa transmídia, que tem suas origens na mistura de intertextualidade
(BAKHTIN, 1997) com hipermídia (LANDOW, 2009), como propõe Marsha
Kinder (1991), em um dos primeiros aportes sobre o tema, e divulgado por
Henry Jenkins (2001; 2009) com olhares contemporâneos. Este tipo de
construção narrativa ganha força a cada dia a partir dos ambientes digitais e
começa a ser objeto de estudo no campo jornalístico de maneira sólida,
inclusive. Dentre os estudos sobre o tema podemos encontrar investigações
específicas sobre o papel da blogosfera na construção da informação
(GILLMOR, 2005), de redes sociais e de Twitter na circulação de notícias
(ORIHUELA, 2011) e sobre métodos de produção de reportagens a partir de
estruturas narrativas transmídia (RENÓ e FLORES, 2012). Entretanto, o campo
dos estudos sobre comunicação e narrativa transmídia ainda carece de
atenção especial voltada a dispositivos móveis como produtores de conteúdos
documentais com linguagens transmidiáticas, especialmente acompanhado de
um estudo de interface, inclusive por suas peculiaridades de linguagem e de
interface para a distribuição de um conteúdo informativo em telas tácteis de
maneira compreensível e navegável.
Apresento, com base nestes parâmetros, um estudo sobre a produção
de documentários transmídia e interfaces interativas para a oferta destes
conteúdos. Esse cenário vem a ser uma forma contemporânea de difusão
comunicacional que contempla ao mesmo tempo distintas plataformas, com
diversas linguagens e narrativas a partir de uma variedade de meios para
usuários diversificados, graças ao processo interativo na recepção e
navegação do conteúdo, especificamente a partir de dispositivos móveis e por
um conceito de rede social
Porém, considero que para esta estrutura de linguagem é necessário
pensar, antes da produção em si, no roteiro de conteúdo, que denomino
fluxograma algorítmico circular rizomático (RENÓ, 2011), conforme figura 01,
onde cada conteúdo pode ter sua combinação, independente da ordem de
conexão a partir dos nós neurais.
Figura 1: Roteiro circular rizomático (RENÓ, 2011).
O desafio deste estudo foi definir uma linguagem de produção de
documentários transmídia que contemplasse modelos específicos de interface
não somente apoiados no roteiro rizomático, mas que também possibilitasse ao
usuário a navegação por entre os nós de forma natural e cognitiva (SCOLARI,
2004), e sem a necessidade de um “geolocalizador de conteúdos” para saber
onde, quando e como poderá obter a informação desejada. Esse foi o objetivo
secundário deste estudo, ou seja, definir conceitos, a partir de uma
investigação de carácter teórico-prática que ofereceu não somente uma
proposta narrativa com uma base bibliográfica, mas também um formato a
partir de experimentos aplicados sobre a produção de documentários
transmídia por dispositivos móveis – o tema principal do mesmo. Para tanto,
foram definidos caminhos metodológicos que asseguraram um estudo e seus
resultados de forma eficaz e racional. Com esse estudo, ofereço conceitos que
possibilitam a produção de um modelo de documentários transmídia
produzidos e visualizados com dispositivos móveis. Desta forma, a eficácia
comunicacional destes dispositivos será amplificada também no campo do
audiovisual, já que tais possibilidades já são encontradas em ambientes onde o
entretenimento rege sua existência.
Para esta investigação, detectei algumas questões a serem respondidas.
Tais questionamentos foram fundamentais na compreensão da arquitetura
necessária de interfaces para a produção e distribuição de conteúdos
documentais transmidiáticos aplicáveis a dispositivos móveis, especialmente
com a tecnologia touch screen. Questionamentos estes que englobaram desde
problemáticas relacionadas à linguagem estética até questões que perambulam
pelas limitações tecnológicas.
Uma das perguntas tratou de saber se é possível e viável produzir
conteúdos
audiovisuais
transmidiáticos
para
dispositivos
móveis
com
qualidade, e se é necessário adoptar uma linguagem específica. Com relação à
produção de conteúdos audiovisuais transmidiáticos para dispositivos móveis e
com uma linguagem específica acredito que seja viável, considero que existe
um público crescente que se conecta a partir destes equipamentos (superando
50% de todo o tráfego de internet do mundo ao final de 20121) e que faltam
estudos e propostas de linguagem sobre o tema. Porém, acredito também que
não são todos os dispositivos que possibilitam de forma viável tal utilização.
Uma segunda pergunta que direcionou essa pesquisa contemplou os
fatores que devem ser considerados na elaboração de uma interface ideal para
esse tipo de conteúdo comunicacional e nessas plataformas, tendo em vista o
poder do audiovisual na linguagem contemporânea e a capacidade de oferecer
tal conteúdo nas telas tácteis atuais. Sobre isso, este estudo tornou-se
necessário porque a relação homem-máquina deve receber considerável
atenção num processo comunicacional contemporâneo, onde a transparência e
1
Segundo dados apresentados por representantes do Google no Congresso FELAFACS 2012,
em Lima – Peru.
a interpretação deste tipo de espaço devem estar presentes no momento da
planificação do mesmo, assim como o usuário em questão, e não os gostos
pessoais de seu elaborador.
Uma terceira pergunta que direcionou este estudo refere-se ao real
interesse do usuário por esse tipo de possibilidade mediática, onde o
documentário passa a ser um hiper-documentário a um simples toque, dadas
as possibilidades de navegação a partir da linguagem transmídia. Para tanto, e
levando em consideração os dados apresentados por Google, considero que
este tipo de produto midiático recebe um crescimento de demanda a cada
momento pelos usuários contemporâneos, acostumados a “sentir” as
mensagens mediáticas com as pontas dos dedos. Além disso, são poucos os
estudos sobre interfaces em ambientes digitais, e menos estudos ainda com a
mistura de interface com conteúdos de carácter jornalístico, que por sua vez
possuem suas características próprias. Tais hipóteses foram questionadas e
validadas a partir da pesquisa bibliográfica e do desenvolvimento do
experimento desta investigação.
Finalmente, a pesquisa ofereceu resultados que contemplaram as
hipóteses apresentadas, oferecendo uma nova informação com respeito aos
cidadãos contemporâneos, erroneamente considerados digitais por alguns
teóricos. Na realidade, estas gerações que atualmente consomem conteúdos
mediáticos são analógicas em adaptação ao digital. Isso ficou visível graças às
interfaces propostas por esses cidadãos que se limitavam a fronteiras
conservadoras no que tange linguagem, o que demonstra uma forçada
participação na sociedade líquida (BAUMAN, 2001). Trata-se de uma tentativa
de transformar-se em líquida, ainda que se mantenha uma aparente solidez.
Esse texto é dividido em capítulos que constroem a discussão a partir de
uma revisão/reflexão teórica até chegar ao ponto do estudo prático,
proporcionando ao leitor uma imersão nos conceitos que direcionaram a
investigação.
O primeiro capítulo após a introdução foi denominado “Definições e
métodos” e assume uma fundamental importância por ser o momento onde os
processos metodológicos da pesquisa o os parâmetros básicos adoptados para
este estudo foram apresentados, não os considerando como verdades
absolutas. São apenas as ideias que apresentam, a meu ver, maior solidez e
convencimento.
Na ciência não existem verdades absolutas. Mesmo nas denominadas
ciências duras a verdade é questionada constantemente, e quando se
descobrem novas “verdades”, essas passam a substituir de maneira subliminar
as anteriores. Por essa razão, ainda que se considerem estes parâmetros na
pesquisa, outros olhares acadêmicos que divergem desses são respeitados,
ainda que recebam um selo de “insuficientemente convincente”.
Ainda com relação ao capítulo definições e métodos, neste são
oferecidos parâmetros sobre interatividade, pois se trata de um traço
importante para essa pesquisa. Também se discute de maneira crítica as
diferenças e semelhanças entre a estratégia cross-media e linguagem
transmídia, pois são temas parecidos, mas diferentes, e tais semelhanças
provocam diversas confusões teóricas entre as diversas correntes acadêmicas
sobre esses temas. Ainda neste momento do texto são oferecidos conceitos
sobre ambientes touch, pois são os que interessam à pesquisa em questão, e
também uma reflexão sobre os usuários tácteis, onde se constrói uma
diferença entre usuários digitais e analógicos em busca de uma digitalização do
comportamento.
Com os parâmetros e processos definidos, o texto oferece um
detalhamento sobre o que vem a ser o documentário transmídia, pois esse é o
tipo de conteúdo mediático que interessou à pesquisa em questão. Para tanto,
são oferecidos olhares diversos sobre o tema, que apontam a opiniões
otimistas, mas também a ideias que contemplam uma crítica sobre sua
capacidade para atuar em um todo jornalístico. De qualquer forma, trata-se de
um momento importante da informação para que o leitor possa discernir entre o
audiovisual convencional e essa nova linguagem imagética, que surge não
como um gênero, mas como um local de imigração, como uma nova ecologia
pelos considerados “velhos meios” (LEVINSON, 2012).
Um novo momento no estudo, mas também de fundamental importância
para a compreensão de seus resultados, é a apresentação de definições e
reflexões sobre interface como linguagem. Nesse texto, são apresentadas
definições e interpretações sobre o tema, especialmente as oferecidas por
Rudolf Carnap (2003) e Carlos Scolari (2004), mas também contemplando
ideias de Lev Manovich (2005) nessa construção cognitiva. Subdividido em “o
que é interface”, “o poder do audiovisual”, “textos e textos”, “multiplataformas” e
“a navegação interna”, o capítulo apresenta conteúdo que prepara o leitor para
uma compreensão do papel da interface na comunicação. Para tanto, o filósofo
Rudolf Carnap colabora com as ideias apresentadas sobre as recordações de
semelhança, o que acontece de maneira constante nas interfaces. Já o
comunicador Carlos Scolari oferece conceitos mesclados entre a comunicação
tradicional e a semiótica, sua linha de teórica, para propor o que ele denomina
como “interface semio-cognitiva”, ou seja, uma interface transparente, mas que
a detectamos. Por fim, o cientista da informática Lev Manovich oferece olhares
voltados também aos processos binários, ainda que com preocupações
estéticas e cognitivas.
O seguinte momento deste texto, denominado “entre a notícia e o
usuário”, oferece os resultados obtidos pela investigação, ou seja, a proposta
em si. Para tanto, oferece uma estrutura construída por subcapítulos que
contemplam discussões sobre o documentário transmídia, além de oferecer os
métodos, formatos e cuidados para a produção de interfaces comunicacionais
para conteúdos transmídia e em ambientes tácteis. Dessa maneira, o leitor
pode desenvolver seus espaços ou ao menos compreender quais os
parâmetros que podem viabilizar tal produção.
Por
fim,
mas
seguramente
não
uma
proposta
definitiva,
são
apresentadas as conclusões deste estudo. Mas por que não definitivas? Por
uma razão simples e realista. No mundo atual, com a velocidade tecnológica e
a liquidez social que presenciamos o novo já nasce obsoleto. Uma proposta de
interface interativa para ambientes tácteis não deveria ser diferente.
2. Definições e métodos
2.1. Metodologia
Essa pesquisa assumiu um status de investigação exploratória
resultante de outras investigações exploratórias, realizadas desde a fase de
mestrado até um pós-doutoramento anterior, desenvolvida na Universidade
Complutense de Madrid com o tema Jornalismo Transmídia.
Por sua complexidade, esta é uma investigação que engloba diversos
métodos e procedimentos de trabalho, dentre eles a pesquisa bibliográfica,
estudo fundamental neste projeto, pois consiste em compreender os diversos
conceitos envolvidos, especialmente de carácter histórico e filosófico no que
tange a relação entre conteúdos e usuários – a interface – onde se foi
necessário lançar mão a um olhar relacionado indiretamente com o tema a
partir de ideias do pensador alemão Rudolf Carnap. A adoção da pesquisa
bibliográfica se justifica pelas palavras de Ida Stumpf (2006, p.51), “pesquisa
bibliográfica, num sentido amplo, é a planificação global inicial de qualquer
trabalho de pesquisa que vai desde a identificação, localização e obtenção da
bibliografia pertinente sobre o assunto, até a apresentação de um texto
sistematizado (...)”. Com relação à importância e ao momento em que a
pesquisa bibliográfica pode ocorrer no desenvolvimento de uma pesquisa, a
autora complementa:
Num sentido restrito, é um conjunto de procedimentos que visa
identificar informações bibliográficas, selecionar os documentos
pertinentes ao tema estudado e proceder à respectiva
anotação ou fichamento das referencias e dos dados dos
documentos para que sejam posteriormente utilizados na
redação de um trabalho académico. Por vezes, trata-se da
única técnica utilizada na elaboração de um trabalho
académico, como na apresentação de um trabalho no final de
uma disciplina, mas pode também a etapa fundamental e
primeira de uma pesquisa que utiliza dados empíricos, quando
seu produto recebe a denominação de Referencial Teórico,
Revisão da Literatura ou similar. (STUMPF, 2006, p.51)
Esta etapa, realizada logo no início do trabalho, assumiu fundamental
importância no estudo para consolidar a conceituação dos termos, assim como
para a compreensão de técnicas e teorias e na obtenção dos parâmetros para
o desenvolvimento do experimento, pois a investigação foi, de certo modo, uma
aplicação real da compreensão e reformulação de conceitos e teorias
apresentadas por outros pesquisadores, mas experimentadas graças à
metodologia experimental adoptada. A partir destes conceitos, foram
desenvolvidas soluções e novos conceitos para a prática proposta.
Outro procedimento metodológico que envolveu esta investigação de foi
o método quase experimental. Neste modelo metodológico, a pesquisa não
pode ser manipulada pelo pesquisador, que apenas a observa. Por essa
observação, a lógica proposta pela metodologia deste estudo foi aplicada,
graças ao ambiente de pesquisa, desenvolvido especificamente para o estudo,
e aos processos de colheita de dados posteriores, totalmente digitalizados e
fora do controle e de manipulação. Segundo conceitos de Robert Yin (2002, p.
27-28):
Novamente os métodos se sobrepõem. A ampla variedade de
ciências experimentais também inclui aquelas situações em
que o experimentador não pode manipular o comportamento
(…), mas nas quais a lógica da planificação experimental ainda
pode ser aplicada. Essas situações foram comumente
denominadas situações quase experimentais.
A busca por informações relacionadas a conceitos filosóficos, cognitivos
e semiológicos relacionados ao processo homem-máquina, além da história
das diversas definições de linguagem de comunicação e os conceitos de
interfaces digitais e de produção de narrativas transmídia justificam a utilização
deste
método.
interatividade,
Simultaneamente,
interface,
hipertexto,
foram
discutidos
hipermídia,
conceitos
narrativa
sobre
transmídia
e
linguagens contemporâneas de produção/programação, fundamentais para se
compreender os parâmetros desta pesquisa. Também foram explorados os
conceitos de cross-media, casualmente confundida por alguns pesquisadores
como sinônimo de narrativa transmídia.
No momento do experimento, foram produzidos dois documentários
transmídia para o desenvolvimento do espaço com a interface proposta, assim
como a relação entre o usuário e o conteúdo, além de estudos sobre interface
em outras obras desenvolvidas por terceiros. Os resultados alcançados foram
avaliados qualitativamente.
O tipo de amostra proposta foi intencional ou de seleção racional, pois
se esperava avaliar a teoria defendida pelo pesquisador, independente de uma
representatividade universal. Tal escolha metodológica, adoptada por essa
investigação, foi justificada por Robert Richardson (2007, p.161), para quem
“os elementos que formam a amostra relacionam-se intencionalmente de
acordo com certas características estabelecidas no plano e nas hipóteses
formuladas pelo pesquisador. Se o plano possuir características que definam a
população, é necessário assegurar a presença do sujeito-tipo”. Como não se
sabe a quantidade de participantes, esta amostra também é definida como
acidental, que se caracteriza pela “população formada pelos elementos que se
pôde obter” (Richardson, 2007: 160). Considero que este instrumento de
medição é eficiente para a proposta desta pesquisa, independente do tipo de
amostra, pois de acordo com Richardson (2007, p.174) “diz-se que um
instrumento é válido quando mede o que se deseja”.
Outro instrumento metodológico adoptado na investigação define-se
como pesquisa participativa, que ganhou força como método de investigação
entre 1980 e 1990 e vive atualmente uma retomada de aceitação na academia.
Neste instrumento metodológico, segundo Peruzzo (2006, p.133-134), “o
pesquisador se insere no grupo pesquisado, participando de todas as suas
atividades, ou seja, ele acompanha e vive (com maior ou menor intensidade) a
situação concreta que abriga o objeto de sua investigação”, como ocorre neste
estudo, pois foram definidos como integrantes dos grupos de participantes
pessoas ligadas direta ou indiretamente à linha de pesquisa. De acordo com as
propostas de Cicilia Peruzzo (2006, p.126), os aspectos da pesquisa
participante são:
A pesquisa participante consiste nos seguintes aspectos:
a) Presença constante do observador no ambiente investigado
para que ele possa “ver as coisas de dentro”.
b) O investigador compartilha de modo consistente e
sistematizado das atividades do grupo ou do contexto que está
sendo estudado. Ou seja, ele se envolve nas atividades, além
de compartilhar “interesses e fatos”.
A imersão no ambiente de investigação foi constante, e criado na
Internet especialmente para o experimento. A atuação direta na pesquisa
ocorreu com os grupos nos experimentos de forma frequente, e sistematizada
pelos ambientes
virtuais, na obtenção dos
resultados
qualitativos
e
quantitativos, de acordo com orientações metodológicas oferecidas por Cicilia
Peruzzo (2006, p.130). Estes conceitos fundamentam e justificam a escolha por
estas modalidades, pois a relação entre a pesquisa qualitativa e a pesquisa
participativa (ainda que o estudo em questão também adopte uma investigação
quantitativa) é harmónica. Segundo a autora:
Uma luz brota das possibilidades explicitadas pela pesquisa
qualitativa, que entre suas metodologias, oferece a pesquisa
participante. Nessa perspectiva, vão encontrar respaldo no
método dialético (ou do materialismo histórico dialético nas
correntes de esquerda), que possibilita a captação do
fenómeno em todas suas dimensões constitutivas, desde sua
história e dinamicidade até as múltiplas determinações
inerentes a qualquer fenómeno.
Peruzzo (2006, p.131) define que a pesquisa participante possui em
especial três finalidades, todas encontradas nesta investigação. De acordo com
a autora, através da pesquisa participante é possível observar fenómenos
importantes, mas pouco expressivas no campo da pesquisa. A autora também
considera que a pesquisa participante é apropriada para desenvolver estudos
de recepção de conteúdo de medias fora do padrão vigente. Porém, ressalta
que os resultados devem retornar aos envolvidos no experimento.
Foram desenvolvidos, para o experimento, dois espaços virtuais em
tecnologia HTML5 para que os mesmos fossem visualizados em equipamentos
onde a tecnologia disponível exige tal linguagem de programação, além de
possuírem uma tecnologia responsiva para a adaptação em espaços diversos.
Porém, como a proposta desta investigação é o estudo de interfaces interativas
para ambientes táteis e direcionadas para realizar a relação de usabilidade
entre usuários e conteúdos documentais transmídia, adotou-se como
possibilidade de construção tecnológica o aplicativo Wix.com2 em sua versão
gratuita. O ambiente virtual foi um site que reunia os conteúdos de acordo com
a proposta apresentada de tal maneira que sua visualização era total e de igual
2
O aplicativo Wix.com é um espaço onde se torna possível a construção de sites grátis em
tecnologia HTML5. Além da construção dos sites, é possível hospedar o mesmo sem custo ou com
pacotes que oferecem melhoras nos serviços oferecidos. Disponível em http://www.wix.com. Acesso em
05/10/2014.
disposição tanto em telefones celulares com microtelas e em tablets como
também em equipamentos convencionais, tais como computadores e netbooks.
2.2. Parâmetros
Uma investigação parte de alguns parâmetros que definem significados
e entendimentos relacionados ao estudo. Estes significados podem não
coincidir com outros referentes ao mesmo termo, pois disso se tratam as
definições teóricas relacionadas, inclusive porque uma realidade da ciência,
especialmente as ciências humanas, é que não existe verdade absoluta. Por
essa razão, apresentamos na sequência do texto as principais definições que
regem este estudo para que o leitor possa compreender o posicionamento
adotado.
2.2.1. Interatividade
Se existe algo com o qual convivemos de maneira intensa nos
processos comunicacionais contemporâneos, esse algo é a interatividade,
almejada pelos meios de comunicação desde o final do século XX, ainda que
pouco obtida na ocasião. Porém, com a chegada da web 2.0, tais
possibilidades passaram a ser uma intensa realidade. Espaços virtuais
passaram a serem construídos e comandados pelos usuários, acostumados
até então com a imposição de sistemas eletrônicos que atendiam perfeitamente
aos modelos das primeiras teorias de comunicação onde o receptor ainda
existia como um real ator comunicacional. Porém, com o desenvolvimento
destes ambientes interativos os receptores foram extintos e substituídos pelos
usuários, definidos por alguns teóricos como coautores por Denis Renó (2011),
produssumidores, por Decio Pignatari (Renó; Flores, 2012), prosumers, por
Alvin Toffler (1980) e consumidores midiáticos que produzem conteúdo, por
Paul Levinson (LEVINSON, 2012).
Os processos interativos são definidos constantemente por autores
como estruturas narrativas lúdicas onde são exercitados e experimentados
nossos limites criativos. Para Espen Aarshet (1997), os processos interativos
são ferramentas para a mente. Já para Peter Lunenfeld (2005), esses
processos são obtidos a partir de novos caminhos que oferecem novas
experiências. Por fim, para Lev Manovich (2005), os processos interativos
exigem de o elaborador pensar com a cabeça do outro, ou seja, pensar como o
usuário normalmente pensaria para tentar adivinhar as possibilidades de
reconstrução narrativa existentes.
Na sociedade contemporânea a participação é uma realidade constante.
Os cidadãos buscam uma coautoria nos processos, sejam comunicacionais ou
não. Por essa característica, Zygmunt Bauman (2001) define o mundo em que
vivemos como a modernidade liquida, onde amores líquidos e sensações
liquidas acompanham os cidadãos. Estas características se resumem de
alguma maneira, também pelo autor, em uma sociedade individualizada
(BAUMAN, 2008), característica também presente nos processos interativos.
Ainda neste cenário, encontramos novos modelos de comunicação
resultantes de modelos antigos: os mapas interativos. Nesses ambientes, os
usuários encontram uma maneira de receber informação através de processos
lúdicos que se assemelham aos videojogos, ou seja, exercícios para a mente,
como defende Aarshet. Mas também encontramos linguistas, como Bakhtin
(1997), que defende a ideia de que toda leitura é interativa, pois a partir dela
temos a oportunidade de participar do processo de recepção pela interpretação
do conteúdo e de sua mensagem. Sim, é uma interatividade, mas não a que
propomos aqui, onde se torna possível uma alteração do conteúdo ou mesmo
de seu processo cognitivo, ou seja, os caminhos da leitura. Dessa maneira, a
interatividade simplista proposta por Bakhtin deixa de ser efetivamente uma
atividade completa.
Porém, encontramos uma discussão sobre o tema que merece atenção.
Para o investigador brasileiro Alex Primo (2007), não existe interatividade.
Segundo o autor, isso é um equívoco, pois o correto é usar o termo interação,
ainda que parecidos. Consideramos que sim, existe interatividade, e também
interação. Interatividade é atividade entre, e isso ocorre num processo homemmáquina, enquanto interação é o mesmo que ação entre, ou seja, entre
homem-homem. O primeiro processo nos interessa neste estudo: a atividade
entre, aqui neste estudo entre o home com seus dedos e a máquina com telas
tácteis.
2.2.2. Cross-media versus transmídia
Ainda que para alguns teóricos cross-media é o mesmo que transmídia,
isso é um equívoco conceitual comum em novos formatos de linguagem ou de
estratégia. Na verdade, cross-media é uma estratégia comunicacional,
enquanto transmídia é uma linguagem, uma narrativa, como o próprio nome a
define.
Cross-media é um termo que significa a transmissão de um mesmo
conteúdo por plataformas diferentes, como comenta e alerta Henry Jenkins
(2001) para evitar as confusões conceituais frequentes. Vicente Gosciola
(2012) também atenta a essa diferença conceitual, apontando que tal
estratégia comunicacional é comumente adotada em processos de marketing,
onde os resultados mercadológicos são a ambição principal. Diferente do
cross-media, a narrativa transmídia é uma linguagem contemporânea
desenvolvida pela sociedade a partir dos processos e ambientes interativos e
que tem como característica a difusão de mensagens distintas, a partir de
plataformas diversas, por redes sociais e ambientes facilitadores de
retroalimentação e em dispositivos móveis (RENÓ e FLORES, 2012). De
maneira mais simples, mas também explicativa, Vicente Gosciola (2012, p.9)
define narrativa transmídia como “uma história expandida e dividida em várias
partes que são distribuídas entre diversas mídias, exatamente aquelas que
melhor possam expressar a sua parte da história”. Enquanto a estratégia crossmedia distribui a mesma mensagem em multiplataforma, a narrativa transmídia
oferece
mensagens
distintas,
ainda
que
relacionadas,
em
ambiente
nessa
diferença
multiplataforma.
Entretanto,
alguns
teóricos
seguem
deslizando
conceitual, possivelmente por se tratar de facilitar as coisas, ou de não
reconhecer as diferenças. Andreas Veglis (2012) considera que cross-media é,
de maneira simples, “a produção de qualquer conteúdo (notícias, música, texto
e imagens) por mais de uma plataforma de mídia (por exemplo, impressão,
web e TV) dentro da organização mesma mídia”, não importando se a
transmissão é da mesma mensagem ou se transmitem distintas mensagens.
Tal junção de termos também é realizada por Indrek Ibrus e Carlos Scolari
(2012), para quem uma estratégia cross-media é também conhecida como
narrativa transmídia, ou seja, são sinônimos. E declaram isso de maneira
contundente logo na introdução da obra. Na realidade, são termos parecidos,
mas diferentes. Isso é o mesmo que considerar hipertexto, uma definição
cunhada por Ted Nelson (LANDOW, 2009) o mesmo que hipermídia, definido
assim por George Landow (2009). São parecidos e relacionados de alguma
maneira, mas diferentes, ainda que confundidos com certa frequência.
Tal confusão entre narrativa transmídia e cross-media pode ser
explicada por uma falta de conhecimento ou de desenvolvimento do tema, ou
de ambas justificativas. Na realidade, tanto cross-media como transmídia são,
ainda que o primeiro uma estratégia e o segundo uma linguagem,
consideravelmente incipientes no que diz respeito ao estudo e à sua
aplicabilidade. A estratégia cross-media é adotada pelo marketing com certa
moderação, pois um deslize pode provocar perdas econômicas. A narrativa
transmídia é uma linguagem frequentemente aproveitada por conteúdos de
entretenimento, mas ainda pouco adotada por jornalistas, talvez por
desconhecimento, mas provavelmente por um perfil conservador existente nas
redações (como pudemos presenciar com a chegada da internet, por exemplo,
quando os jornais eletrônicos limitavam-se a reproduzir suas versões
impressas).
Porém, na academia, comportamentos conservadores são pouco
justificados, pois neste espaço podemos (e devemos) experimentar, além de
descobrir o que já foi feito e interpretar suas características e diferenças. O que
acontece, especificamente no caso da narrativa transmídia, é que por ser um
tema de considerável relevância nos dias atuais, pois se trata de uma
linguagem, e não uma técnica, todos querem entrar nesse tema.
Elizabeth Gonçalves (2012), destacada estudiosa brasileira no campo de
comunicação
e
linguagem,
apresenta
uma
definição
simples,
mas
esclarecedora, sobre o transmídia capaz de pôr fim às confusões com a
estratégia comunicacional cross-media e sua estrutura multiplataforma. Para
ela, “esse conceito ‘multi’ vem sendo substituído, na atualidade, pelo conceito
‘trans’, que implica na contaminação, na transferência, na influência e na
participação direta no conteúdo”. (GONÇALVES, 2012, p.20)
Para este estudo a compreensão das diferenças é fundamental, pois a
proposta não foi construir narrativas com estratégias cross-media, até porque
tais narrativas já existem no audiovisual há tempos. A narrativa transmídia é
algo que chega e começa a ocupar um espaço nos meios, não porque os
jornalistas assim decidem, mas porque a sociedade impõe a cada momento
uma nova mudança de comportamento e linguagem para que as notícias
cheguem e circulem entre os usuários, antes receptores.
2.2.3. Ambientes Touch
O teórico Marshall McLuhan (2005), em uma de suas “premonições3”,
dizia que os meios tecnológicos eram a extensão do nosso corpo. Se
considerarmos os velhos meios (SCOLARI, 2008), podemos pensar que
Marshall McLuhan tinha toda a razão ao considerar que um controle remoto
(naquele momento funcionando através de um cabo) ou um simples seletor de
canal eram realmente extensões do nosso corpo. Os resultados da ação
desses dispositivos eram realmente extensões do nosso corpo, pois era como
se enfiássemos as mãos dentro de um televisor e mudássemos de canal, por
exemplo. Entretanto, McLuhan não imaginava que as extensões do corpo
chegariam tão longe a ponto de colocarmos as mãos, efetivamente, nos
conteúdos com os quais nos relacionamos.
Os ambientes touch, ou tácteis, oferecem ao usuário a possibilidade de
“sentir” o conteúdo em suas mãos. Manuseamos o conteúdo em ambientes
tácteis de maneira intuitiva e muito próxima do real. Temos, a partir dessa
tecnologia, a sensação que remete a algo que conhecemos, remete a algo real.
Tal definição justifica a utilização de Rudolf Carnap neste estudo (ver 4.1), pois
o mesmo propõe que nossos processos cognitivos são constituídos por
“recordações de semelhança”, como ocorre ao manusearmos um teclado digital
de um tablete, por exemplo. A ação de teclar é como se existissem as teclas de
maneira física, ainda que sejam apenas ícones oferecidos de maneira digital e
sensitiva. Entretanto, para o usuário, a relação do físico com o real não é
evitado pela temperatura e pela textura da tela de vidro do dispositivo. O
mesmo ocorre com o movimento de mudar as páginas de um livro em
equipamento Kindle ou seu aplicativo para tablets de outras marcas, com uma
3
A palavra premonições é apresentada entre aspas porque, apesar de Marshall McLuhan ser
conhecido como o profeta da comunicação, o que ele realmente fez foi observar de maneira atenta e
eficiente ao comportamento social daquela época.
imagem que “dobra” como se fosse realmente uma folha de papel física. Na
verdade, sentimos isso, ainda que seja uma imagem animada formada por
pixels. Porém, pela sensação do touch, “sentimos” não somente a textura do
papel como também o vento que o virar de páginas proporciona.
A tecnologia touch surge em 1971 a partir de uma ideia tecnológica e
empresarial de Jason Ford (RENÓ e FLORES, 2012, p.86) com a criação da
empresa Elo TouchSystems, que tinha como objetivo produzir dispositivos com
telas sensíveis ao toque. Porém, essa tecnologia transformou-se em realidade
no início do século XXI, com a chegada do iPhone e sua tela táctil. A partir
desse dispositivo, outros ambientes passaram a experimentar a tela sensível,
como o MacBook, da própria Apple, em 2009, telefones celulares, tablets
(todos os disponíveis) e atualmente algumas linhas de computadores. Com o
desenvolvimento do projeto de Jason Ford, quase quarenta anos depois, o
mouse e o teclado passaram a ser obsoletos, desnecessários, supérfluos na
relação comunicacional homem-máquina. Com isso, diversas mudanças
ocorreram, desde o design de conteúdo até a estrutura física do equipamento.
2.2.4. Usuários táteis
Ainda que normalmente se refira à sociedade contemporânea como a
Geração Y, os cidadãos que consomem conteúdos por redes sociais e a partir
de dispositivos móveis não são digitais, mas analógicos em processo de
adaptação aos novos meios e às linguagens atuais, que modificaram a maneira
de se comunicar por ambientes mediados. Essas mudanças também alteraram
dicionários e idiomas, introduzindo palavras e termos que antes não eram
adoptados por esses grupos. Por fim, modificou-se a forma de construir
processos de relação interpessoal, com o advento de ambientes virtuais, de
caráter real, e que oferecem uma comodidade a esse cidadão, promovendo
uma maior rede social.
Segundo Paul Levinson (2012), o cidadão agora se comunica
naturalmente por seus dispositivos móveis, como se estivessem em qualquer
outro ambiente. Para o autor, o iPhone passou a ser o parceiro mediático
favorito, e a partir dele tudo se produz. Além disso, Levinson (2012, p.125)
declara que “a essência dos novos novos meios é a escolha”, que pode ser
potencializada em ambientes tácteis com interfaces eficientes. Ambientes
móveis que oferecem uma mobilidade de acordo com as expectativas “new
new media” que Levinson propõe.
De acordo à produção midiática, Denis Renó e Jesús Flores (2012)
oferecem resultados de pesquisas e experimentos que contemplaram
produções de conteúdos audiovisuais a partir de telefones celulares de tal
maneira que podemos considerar uma mudança em processos coerente com
uma nova sociedade. Entretanto, os autores apostam em uma necessidade
real de adaptação por parte dos cidadãos que aí estão a essas possibilidades,
pois para eles não é natural. O que podemos considerar natural é o manuseio
de um tablet por uma criança de dois anos de idade, que o faz de maneira tão
natural como se fosse um conteúdo efetivamente de fácil compreensão e
navegação.
O “contato” com o conteúdo a partir de telas tácteis é comum e natural
nos ambientes comunicacionais de hoje. Ainda que a frequência seja maior em
telefones celulares e tablets, essa tecnologia passa a migrar para
computadores de mesa e portáteis, com o lançamento de produtos com essa
tecnologia. Entretanto, essa febre se consolidou na atualidade, pois em 2009 a
Apple lançou equipamentos portáteis (da linha MacBook) com telas tácteis
como temos atualmente em diversos produtos, inclusive da Apple. Mas esse
produto recuou após lançado pela pouca aceitação por parte dos usuários, o
que deve ser vivido de maneira distinta nos dias atuais.
Marshall McLuhan (2005), ao apresentar a ideia de que os meios de
eletrônicos eram extensão do nosso corpo (parafraseando seu professor,
Norbert Wiener, para quem os dispositivos elétricos eram fundamentais para
trabalhar como extensão dos nossos braços) não imaginava que as extensões
do corpo chegassem tão longe, a ponto de oferecer o toque ao conteúdo digital
e de possibilitar procedimentos muito próximos de uma situação real de
manuseio de algo existente no mundo físico.
Atualmente, é impossível pensar em uma estrutura comunicacional que
não seja construída sobre os conceitos de contato táctil, especialmente se os
dispositivos devem oferecer mobilidade. A sociedade está habituada a “sentir”
o conteúdo em seus dedos, e a tecnologia criada por Jason Ford atende
perfeitamente a essa expectativa. Porém, há um desafio considerável a
enfrentar, que é a criação de um modelo de interface dentro dessas
necessidades.
3. Interface como linguagem
3.1. Filosofia e pragmatismo
Nossa vida é construída através de interfaces entre nós e os objetos que
nos rodeiam. Nossas relações interpessoais são mediadas por interfaces
humanas. O conhecimento é transmitido a partir de interfaces. Apesar dessa
nossa relação cotidiana com a interface, tal linguagem comunicacional é pouco
explorada,
como
se fosse pouco atraente,
um
limbo onde
poucos
pesquisadores se arriscam a caminhar em busca de explicações e/ou
interpretações.
Ainda que seja um limbo, a interface é fundamental em quase todos os
processos humanos, especialmente na comunicação, e da mesma maneira na
representação da notícia, onde o conteúdo midiático é muito intenso,
diversificado. A interface é o primeiro contato que o usuário tem com o
conteúdo midiático; ela media o conteúdo e o usuário, num processo de
tradução da mensagem original para uma linguagem humana e cognitiva. No
campo da tecnologia, interface significa “dispositivo capaz de assegurar o
intercâmbio de dados entre dois sistemas (ou entre um sistema informático e
uma rede de comunicação)” (SCOLARI, 2004, p.39).
Em realidade, a interface é fundamental para a comunicação
contemporânea, especialmente, mas não exclusivo, para as mídias digitais,
onde uma diversidade de informações e possibilidades compartilha um mesmo
espaço composto por luz, som, movimento e atualmente as sensações tácteis.
Interface existe no painel do carro, onde estão os comandos e as
informações. Existe no controle remoto da televisão ou de um sistema de som.
Existem nas gondolas dos supermercados para uma melhor comercialização
dos produtos, inclusive com conceitos semióticos de transmissão da
informação. Finalmente, existe na tela do computador ou de smartphones e
tablets, onde o conteúdo é distribuído para que o usuário tenha uma melhor e
mais atraente navegação. Mas é importante reconhecer os limites da
tecnologia e do público e, com isso, escolher e construir interfaces que
promovam o “diálogo” entre o usuário e o conteúdo. Especializado nos estudos
sobre o tema, Lev Manovich (2005, p.120) propõe o termo “interface cultural”
para descrever a interface entre o home, o computador e a cultura; são as
formas em que os computadores exibem dados e permite a relação cognitiva
com eles. Para o autor, a interface cultural é “a interface entre o homem, o
computador e a cultura: são as maneiras em que os computadores apresentam
os dados culturais e nos permitem relacionar-nos com eles” (MANOVICH,
2005, p.120). No entanto, para Manovich (2005, p.113):
Em termos semióticos, a interface do computador funciona com
um código que transporta mensagens culturais sobre uma
diversidade de meios de comunicação. Onde usamos a
internet, tudo o que existe de acesso - texto, música, vídeo,
espaços navegáveis - atravessa a interface do navegador e,
em seguida, o sistema operacional.
Sobre os modelos de interface, Lev Manovich apresenta algumas
possibilidades para uma utilização específica. Os modelos apresentados por
Manovich (2005: 103) são interface de árvore, escalabilidade, simulação,
interface de imagem e imagem da interface de instrumento. O modelo principal,
interface arbórea, consiste na distribuição das possibilidades de ramificações
"da árvore" através de nós neurais (MANOVICH, 2005, p.87).
O autor desenvolve seu estudo sobre linguagens em conteúdos digitais,
mas com uma preocupação no campo digital, especificamente sobre a
arquitetura de distribuição do conteúdo na tela do computador, de maneira
intensa e menos presente no campo dos processos cognitivos. Naturalmente,
Manovich apoiou parte de seus olhares nos conceitos da semiótica,
especialmente sobre a cultura humana, mas não oferece discussões
especificas sobre as sensações a partir de interfaces, o que teria muita relação
com a semiótica.
Quem, de alguma maneira, imergiu nas sensações em processos visuais
foi o filósofo austríaco Rudonf Carnap (2003), que em seu mais importante, e
inacabado, estudo – Aufbau – discutiu o que recuperamos neste estudo para
compreender as interfaces: recordações de semelhança. Essa teoria propõe
que semelhanças observadas em ambientes visuais provocam recordações
relacionadas a sensações. Isso é comum em processos de interface, por
exemplo, em espaços onde a relação com o consumo é visível. Nesse caso,
podemos apontar como exemplos as páginas de comércio eletrônico, que em
alguns casos lembram a uma loja real, uma livraria com estantes de livros ou
mesmo o carro de compras que o cliente pode “completar” com os produtos
escolhidos. Isso é o que os autores definem como “experiência de compra”.
Porém, há outros momentos onde as recordações de semelhança, como
no jornalismo. Isso ocorre especialmente quando o jornalista busca construir
uma relação com um fato anterior à notícia atual, e direcionar uma construção
da opinião pública. São inúmeros os exemplos, mas podemos destacar uma
capa da revista Veja4, de 10/08/2005, que apresenta o então presidente do
Brasil, Luis Ignácio Lula da Silva, em uma pequena fotografia centralizada com
um fundo negro e escrito Lula com duas letras L (uma verde e amarela) e a
mesma tipologia usada pelo ex-presidente desposto por um processo de
Impeachment, Fernando Collor de Melo (ver imagem 01). Essa interface da
revista provocava uma recordação de semelhança entre os dois políticos, o que
era interessante para o editorial, pois a reportagem proposta pela capa era a de
que Lula caminhava para um possível Impeachment. Não é o objetivo de este
estudo discutir o valor de notícia que tal reportagem pode oferecer, até porque
naquele momento (e em nenhum outro) o governo Lula não caminhava para
um Impeachment, ainda que fosse o interesse de grupos representados pela
Veja. O que interessa nesse estudo é apresentar a utilização deste recurso
proposto por Carnap para provocar recordações de semelhança e, desta
maneira, construir a opinião pública.
Esse recurso aproveitado pela revista Veja paira perto da semiótica, mas
também podemos localiza-la nas ideias de Rudolf Carnap (2003), que as define
como experiências elementares (Elementarerlebnisse), ou também como exel.
Em seguida, o autor oferece conceitos de qualidade da semelhança em níveis
sensíveis e cromáticos no campo audiovisual, a partir das seguintes categorias:
auditiva, olfatória, táctil e cenestésica, todas elas relacionadas ao espaçotempo físico. E complementa: “Isto [essas definições de conceitos] parece
justificar a asseveração de que as emoções sentidas (...) realmente se
encontram no mesmo nível das sensações” (CARNAP, 2003, p.133).
4
Disponível em http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/100805/imagens/capa380.jpg. Acesso em
14/10/2014.
Imagem 1: Capa sobre Lula na Veja
O autor, em 1963, apresenta uma discussão sobre linguagens
empregadas para provocar as recordações de semelhança, e para ele
deveríamos reformular linguagens para tanto. Para ele, era fundamental “uma
reformulação das definições como regras de operação para um procedimento
construtivo aplicável por qualquer um, seja um sujeito transcendental kantiano
ou uma máquina de computador” (CARNAP, 1963, p.18). Rudolf Carnap já
vislumbrava essa necessidade de reformulação para o que estava por ganhar
força nos processos comunicacionais, verdadeiramente estranho para os seres
humanos no que diz respeito a processos e construções cognitivas no campo
da comunicação. Para ele, inclusive, a interface do computador (ainda que
precária naquele momento e limitada a usos militares e acadêmicos) carecia de
definições melhores de classes, Segundo Carnap (1963, p.18), “nós
encontraremos como classes sensoriais não somente as classes das
qualidades visuais, as qualidades auditivas, as qualidades térmicas, etc., mas
também as das emoções”, que podemos encontrar nas recordações de
semelhança. E também defende que a emoção é construída a partir de um
agrupamento de qualidades, e não somente uma isolada (CARNAP, 1963,
p.93).
Mas Rudolf Carnap não desenvolve suas ideias isoladamente. O autor
dialoga com Charles Sanders Pierce, considerado o pai da semiótica, para
quem “a consciência ocupa essencialmente um tempo: e o que é presente na
mente em qualquer instante ordinário é o que é presente durante um lapso no
instante em que isso ocorre. Então, o presente é metade passado e metade
futuro” (PIERCE, 1999, p.322). Ou seja, o que sentimos é um pouco o que já
vivemos e outro tanto que esperamos viver.
Tais recordações de semelhança estão presentes nas interfaces dos
tablets e dos smartphones de tela táctil, ou seja, são trabalhadas diversas
sensações, ao mesmo tempo, como propõe Carnap. Além disso, pelo fato de
se utilizar princípios de toque dos dedos como extensão do corpo, como
propõe McLuhan (2005), a sensação obtida é real, ainda que por um espaço
virtual.
Lev Manovich (2005) também propõe olhares direcionados a uma
interface que seja familiar. Para o autor: “A linguagem das interfaces culturais
se compõem em grande parte de elementos de outras formas culturais que já
resultam familiares” (MANOVICH, 2005, p.121). Com isso, percebemos uma
relação direta com o que Rudolf Carnap propõe em Aufbau, ou seja, as
recordações de semelhança, de certa maneira, também são consideradas por
Lev Manovich.
O autor também constrói uma relação entre as linguagens dos
computadores e das interfaces culturais, presentes não somente neste
dispositivo, mas também nele. Para Manovich (2005, p.125):
Se os computadores utilizam o texto como metalinguagem, as
interfaces culturais, por sua vez, herdam os princípios da
organização textual que tem desenvolvido a civilização humana
durante sua existência. Um desses princípios é a página.
A página do computador é a interface que buscamos ao entrar em
contato com seu conteúdo e ao aproveitar suas ferramentas. Trata-se de um
espaço de construção cognitiva em que a interface é a principal ferramenta de
linguagem.
Porém, entre as diversas propostas sobre interface que podemos
encontrar, há uma que oferece um interessante equilíbrio entre conceitos
cognitivos e conceitos semióticos: a interface semio-cognitiva, desenvolvida
por Carlos Scolari (2004) em sua tese de doutorado e posteriormente
apresentada em seu livro Hacer Clic. Nesse estudo, o pesquisador argentino
apresenta alguns conceitos sobre a interface a partir de olhares da psicologia,
mas também entrelaça essas ideias com a semiótica e com os processos
cognitivos. Para tanto, oferece a proposta de que uma interface de qualidade
deve reunir em seu espaço dois fatores: a transparência e a interpretação, ou
seja, a interface deve ser transparente, como defendem os semióticos e os
psicólogos, mas também deve proporcionar a construção cognitiva a partir de
sua existência, ou seja, o usuário deve sentir a interface, ainda que não a veja.
Esse diálogo cognitivo entre o usuário e o conteúdo é importante, saudável e
frutífero. Para o autor:
A concepção protética das interfaces ganhou consenso entre
os investigadores e desenhadores em forma paralela à difusão
dos sistemas operativos com uma interface user-friendly. O
verdadeiro problema com a interface – escreve Donald
Norman, um dos pais da moderna ciência cognitiva – é que ‘se
trata de uma interface (...). Eu não quero focalizar minha
atenção na interface, eu quero concentrar-me em meu
trabalho.’ (SCOLARI, 2004, p.24)
Scolari ainda complementa explicando que Donald Norman propõe isso
para que o usuário possa dedicar-se à atividade oferecida pela interface, e não
em compreendê-la. O autor complementa com a reflexão de que a
preocupação com a transparência tem suas origens na valorização da
usabilidade automática, natural por parte do usuário. Para complementar a
ideia, cita uma definição do psicólogo Giuseppe Mantovani (1995, p.65 apud
SCOLARI, 2004, p.25), que aborda o tema em seus estudos, ainda que estas
ideias sirvam somente para uma construção de sua tese sobre a interface
semio-cognitiva.
As tecnologias que funcionam bem têm a característica de
desaparecer, de confundir-se com o entorno em vez de atrair a
luz dos refletores; a atenção do usuário deve concentrar-se
naquilo que quer fazer, não no instrumento. Quando comemos,
nossa atenção se concentra na comida e não no garfo, a
menos que o garfo se dobre ou se rompa.
Porém, logo adiante em seu estudo, Scolari define essa ideia de
interface transparente como uma utopia do desenhador de interfaces. Segundo
ele, “a interface, como qualquer outro lugar onde se verificam processos
semióticos, nunca é neutral ou ingênua. (...) A interação com as máquinas
digitais está longe de ser uma atividade automática, natural e transparente”
(SCOLARI, 2004, p.27).
Para justificar a crítica com relação ao tradicional conceito de interface
transparente, Carlos Scolari (2004, p.74) propõe uma ideia de interface semiocognitiva, e para tanto apresenta quatro modelos básicos:
1. Metáfora instrumental: a relação entre o usuário e o conteúdo digital é
da manipulação dos objetos virtuais na tela (de comunicação do usuário
para a tela);.
2. Metáfora superficial: a relação entre o usuário e o conteúdo digital
ocorre a partir do reconhecimento de objetos virtuais existentes na tela
(comunicação do computador para o usuário);
3. Metáfora de conversação: a relação entre o usuário e o conteúdo
digital ocorre a partir do diálogo entre eles (o usuário e a troca de
informações objeto virtual para a navegação);
4. Metáfora espacial: o usuário interage com outro usuário e também
com o conteúdo digital (por exemplo, a comunicação virtual, entre duas
ou mais pessoas, um processo de comunicação P2P (entre pessoas),
processos de conectivismo (RENÓ, 2012), processo e conteúdo de
jornais reconstruídos por usuários em processos de coautoria).
Para apoiar essas ideias, Scolari produziu um esquema que compara
visualmente as quatro metáforas de interface:
Imagem 2: Metáfora da Interface (SCOLARI, 2004, p.74)
A interface conversacional é a que proporciona o diálogo entre o usuário
e o computador, em uma via de mão dupla. Porém, essa interface pode ser
eficaz ou não, dependendo de seu grau semio-cognitivo. Para tanto, podemos
comparar a interface de um computador de sistema operacional Windows,
pouco eficaz no diálogo entre o sistema e o usuário, com a de um computador
com o sistema operacional Mac OS, considerado um eficiente modelo no
quesito visual. Para tanto, apresentamos o painel de controle dos dois sistemas
abaixo:
Imagem 3: Interface Windows 7N
Imagem 4: Interface Mac OS Lion
Enquanto a primeira exige uma observação detalhada de seu conteúdo,
a segunda oferece as possibilidades ao simples clique, de maneira cognitiva e
“transparente”.
Há, ainda, más interfaces para ambientes interativos onde o usuário
deveria dialogar com o conteúdo oferecido de maneira simples e direta, mas
não consegue por uma falta de construção cognitiva. Como exemplo dessas
interfaces podemos visualizar a interface do canal TELETEXTO, da TVE –
Televisão Espanhola (Espanha). Com conteúdo limitado, mas interativo, a tela
de acesso possui uma interface obsoleta, nada cognitiva nem semiótica, ainda
que seja da metáfora conversacional. Registrada em 2011, a interface do canal
naquele momento apresentava uma linguagem ineficiente.
Imagem 5: Canal TELETEXTO - TVE
Porém, dentre as quatro metáforas propostas pelo autor, a que
adotamos na internet em espaços eficazes é, sem dúvida, a espacial, que
propõe o diálogo entre espaços reais-virtuais (AUGÉ, 2007) e dois ou mais
usuários. Esse tipo de metáfora está presente no cotidiano, por exemplo, em
páginas interativas como a rede social Facebook (criticada pelos usuários em
uma de suas recentes modificações de interface) e o sistema de comunicação
interpessoal instantânea Skype, que possui fácil manuseio de seus comandos,
ainda que em alguns momentos ofereça certa dificuldade.
Imagem 6: Interface Facebook
Imagem 7: Interface comunicadora instantânea Skype
Ainda no campo das metáforas, consideramos a espacial como a ideal
para a narrativa transmídia, pois nesse espaço é necessário oferecer, além do
diálogo entre o usuário e o conteúdo de maneira interativa, também o dialogo
entre usuários para promover a possibilidade de circulação por redes sociais.
Porém, além disso, é fundamental considerar a estrutura do conteúdo em si
(como propõe Lev Manovich) e as recordações de semelhança propostas por
Rudolf Carnap. Dessa maneira, aproximamos o conteúdo do usuário de
maneira semio-cognitiva, como finaliza Carlos Scolari.
3.2. O poder do audiovisual
Para direcionar este estudo, é fundamental discutir as possibilidades
apresentadas pelo audiovisual no campo da comunicação. As narrativas
audiovisuais são as mais potentes formas de construção midiática por sua
capacidade de reproduzir o real da maneira mais completa. Segundo Ricardo
Bedoya e Isaac León Frias (2003), o audiovisual é fiel à realidade, pois mescla
em uma mesma mensagem as informações cognitivas de uma imagem da
realidade (som, luz, áudio, movimento, cor), podendo, inclusive, ampliar o
espaço comunicacional para o extracampo.
Essa explicação de Bedoya e Frias é interessante para compreender o
poder da televisão, que para McLuhan (2005) é um importante meio de
comunicação. Ainda que o autor canadense tenha declarado isso em 1964, tal
ideia segue viva e válida, ainda que em um declínio de audiência desde a
chegada da internet, definida por Vilches (2003) como a nova televisão.
Mas o audiovisual assume importâncias maiores que as defendidas por
Bedoya, Frias e Vilches. Segundo Lev Manovich (2005, p.138), “em poucas
palavras o que antes era cinema agora é interface entre o homem e o
computador”. Proponho em meu livro sobre documentário interativo (RENÓ,
2011) que o audiovisual navegável é uma linguagem natural, assim como
outros tipos de linguagem (JAKOBSON, 2003), mas com um poder maior de
sensibilização dos cidadãos.
O audiovisual tem a capacidade de nos transportar para os sonhos que
temos. Quando assistimos a um filme de época, por exemplo, nos transmitimos
para aquele século. Se gostarmos, seguiremos assistindo à obra e repetimos a
dose ou de tema ou de filme mesmo. Se não gostarmos, mudaremos de
narrativa ou de história, mas provavelmente continuaremos entusiasmados
com o audiovisual, que tem um poder de vício pouco visto em outras mídias.
A base de um processo comunicacional contemporâneo é, sem dúvida,
o audiovisual, não somente por sua capacidade cognitiva, mas também pelo
envolvimento social com essa narrativa. Por essa razão, pensar em uma
interface que tenha uma carga cognitiva apoiada em conteúdos audiovisuais é
viável e justificável, especialmente em ambientes que proporcionam uma
navegabilidade hipermidiáticas. De acordo com Gianfranco Bettetini (1986,
p.9):
As teorias e as verificações analíticas da perspectiva semiótica
devem pouco a pouco ajustar as contas com o contexto social
onde se coloca a interação por meio do audiovisual, com a
concretização de manifestações discursivas que ali se
produzem, com as funções que os meios audiovisuais têm
assumido progressivamente e, sobretudo, com os resultados.
Essa poderosa linguagem midiática pode ser a base de interface para o
documentário transmídia em dispositivos móveis, que possui uma aptidão
considerável no campo de linguagens de interface para o documentário
transmídia em dispositivos tácteis. Tais equipamentos oferecem qualidade de
áudio e vídeo suficientes para exibir um conteúdo de tal linguagem em sua
interface, o que o indica como possível linguagem para a comunicação
contemporânea.
3.3. Textos e textos
A definição de texto passa por diversos significados. O primeiro deles é
a construção de mensagens pela combinação de palavras construídas por uma
sequência de letras. Essa é a que aprendemos desde que começamos os
estudos. É a mais simplista e possui uma aceitação geral, não importa o idioma
que a adote. Entretanto, para os estruturalistas, especializados em estudar a
linguagem, texto é mais que isso, pois busca significado em diversas partes.
Texto significa tudo que possui mensagem, não importando a
combinação de palavras com uma sequência de letras. Para essa linha
acadêmica, podemos considerar texto a palavra sonora, por exemplo, que
possui seu significado, ainda que não ofereça uma estrutura iconográfica.
Bakhtin (1997), por exemplo, defende a existência do texto em todas as partes.
O mesmo ocorre com Jakobson (2003) declara que as relações humanas são
construídas por textos de diversas maneiras. Por fim, Eliseo Verón (2004)
propõe que uma mensagem é como um tecido, com seus diversos fragmentos,
entre eles os textos construídos por uma iconografia, mas também por outros
formatos textuais, entre eles as deixas simbólicas, que podemos encontrar no
tom de voz de quem fala.
Trata-se de pontos-de-vista de um grupo de investigadores que
consideram a mensagem como o mais importante, e não os processos ou os
espaços. Para estes olhares, o vídeo é um texto, assim como o som, a foto, a
cor, a diagramação ou o enquadramento do conteúdo, etc. O contexto também
tem valor para esse grupo, que considera a análise da mensagem como a
ação mais importante para conhece-la realmente.
Um ponto importante com relação ao tema é a existência do próprio
conceito da linguagem transmídia, já que ela surge do que estudam estes
cidadãos: a intertextualidade (cf Introdução). Para tanto, Marsha Kinder (1991)
se apoia no conceito de dialogismo proposto por Bakhtin (1997) e também nas
ideias dos estruturalistas para compreender a construção de sentidos a partir
de textos de diversos tipos. Entretanto, a autora investiga sobre audiovisual
para propor essa definição, o que está longe do significado tradicional do texto
para a sociedade.
Porém, existem textos por outras correntes acadêmicas, além das
tradicionais. Os ecologistas dos meios, ou “media ecologists”, corrente que
surge no eixo Toronto-Nova Iorque pelo grupo conformado por atores como
Marshall McLuhan e Neil Postman, consideram que a mensagem está em
todas as partes, inclusive nos textos, mas não somente neles. Também
consideram que está em outras partes que os estruturalistas não consideram
explicitamente. Para eles, podemos encontrar mensagem midiática na luz,
como propõe McLuhan (2005), o que é compreensível, pois o cinema e a
televisão existem, de alguma maneira, graças à luz e suas variações de tons.
Porém, para outros, como a investigadora estadunidense Valerie Peterson
(2011), os processos de construção e recepção de mensagens são
encontrados inclusive no sexo. Para a autora, podemos encontrar mensagens
midiáticas nas relações sexuais, e o corpo pode ser um meio inclusive nestes
momentos. “Sexo é comunicação no senso da psicologia – como uma flor
comunicadora que recebe seu pólen – de modo que parceiros comunicam
aromas, gostos, sensações e substâncias” (PETERSON, 2011, p.59). Ainda,
para a autora:
Comunicação também está relacionada ao sexo, de maneira
que o entendimento sobre sexo e sexualidade caminha através
da conversação e a escrita pública. Isso significa que, além do
sexo e da comunicação, e a comunicação interpessoal sobre
sexo, há também a prática social de comunicar sobre sexo, e
nenhum destes contextos é totalmente distinto ou imune aos
outros. (PETERSON, 2011, p.71)
A autora propõe que isso é mensagem. Se considerarmos as ideias de
Valerie Peterson como viáveis para a compreensão da amplitude da
comunicação, devemos considerar que o sexo é um texto, ainda que não
possua uma combinação de palavras e letras. Tais ideias confortam a tese que
possuo sobre uma necessária revisão de uma das mais clássicas propostas de
Marshall McLuhan de que “o meio é a mensagem”. Nesse caso, a mensagem é
o meio, pois uma relação sexual não pode ser considerada como meio, e sim
como mensagem, de acordo com Peterson.
Ainda no campo da ecologia dos meios, encontramos uma interessante
experiência sobre estudos de linguagens por Twitter realizada pelo professor
Robert K. Blechman, do departamento de Comunicação e Estudos de Meios da
Universidade Fordham, em Nova Iorque. O pesquisador está escrevendo
atualmente um livro totalmente a partir deste meio, construído e definido por
uma nova mensagem. Dessa forma, o autor fortalece a ideia de que atualmente
a mensagem é o meio.
Imagem 8: Canal do livro Executive severance no Twitter
O livro, intitulado Executive severance5 é uma ficção que envolve na
narrativa temas relacionados com a ecologia dos meios. Seu conteúdo está
5
Disponível em https://twitter.com/Twitstery. Acesso em 16/11/2014.
sendo produzido totalmente por Twitter, e ao final será uma construção
narrativa a partir de mensagens limitadas a 140 caracteres, um novo texto, uma
mensagem que define um meio. Mais uma mostra de que agora “a mensagem
é o meio”, pois Blechman definiu um formato de mensagem e está adaptando o
meio a essa proposta de mensagem. Definimos os meios que vamos usar de
acordo com a mensagem que queremos produzir.
Lev Manovich, em seu atual estudo - Big data, visualization a digital
humanities6- desenvolve uma investigação com relação aos processos de
produção, exibição, observação e interpretação de conteúdos digitais
audiovisuais num momento em que a quantidade de dados e de narrativas
ocupa um mesmo espaço que antes recebia volumes e diversidades de
linguagens mais modestas. Manovich, em seu estudo, desenvolve uma
interface multicanal com informações diversas sobre temas relacionados entre
si, para que o usuário desenvolva sua “leitura” audiovisual em uma big-tela de
dados e compreenda o conteúdo.
Imagem 9: Big-data, formato proposto por Lev Manovich7
O desenvolvimento do estudo está sendo realizado no Laboratório de
Estudos de Softwares da Universidade da Cidade de Nova Iorque, onde
trabalha o investigador atualmente. Essa preocupação do investigador em
6
Disponível em
Acessado em 16/11/2014.
7
Disponível em
Acesso em 15/01/2015.
http://lab.softwarestudies.com/2012/10/big-data-visualization-and-digital.html.
http://lab.softwarestudies.com/2012/10/big-data-visualization-and-digital.html.
compreender esses processos, suas problemáticas e características demonstra
ao mesmo tempo em que existem textos e textos, ou seja, que o texto vai além
da combinação de palavras e letras para dar um sentido à mensagem. Nesse
sentido, interface é um texto, acima de tudo, e esse texto é desenvolvido nesta
investigação, proporcionando uma construção discursiva a partir de múltiplas
plataformas, como propõe a narrativa transmídia.
De todas as formas, texto é mais amplo que simplesmente um pacote de
palavras e letras. Textos são compostos por ícones, símbolos e signos, como
definem os semióticos. Textos são construídos por percepções, interpretações
e sensações, como propõe Carnap. Textos são processos complexos de
construção de mensagens, sejam pelos meios convencionais, sejam por meios
inovadores ou mesmo por meios que nem conhecemos ainda. Mas
percebemos que dentre os textos, o mais eficiente é o audiovisual, onde se
presencia uma representação praticamente fiel da comunicação natural, ou
seja, a que enxergamos a olho nu.
3.4. Multiplataforma
A comunicação contemporânea é construída na multiplicidade de
plataformas comunicacionais. Trata-se de uma convergência midiática, onde
diversos meios distintos compartilham um mesmo espaço ou constroem em
conjunto uma narrativa comum. Para Lorenzo Vilches (2003), a migração digital
é acompanhada por uma construção multiplataforma, onde a convergência de
conteúdos e linguagens é o alicerce. Para Henry Jenkins (2009), a
convergência midiática existe e é fundamental para a comunicação atual, mas
também devemos acompanhar esse processo com outra convergência,
denominada pelo autor de cultural, onde não somente conteúdos são
multiplataforma,
mas
também
os
significados
destes
conteúdos
se
complementam, fundamentando isso na narrativa transmídia. Complementa o
autor que essa convergência deve ser centrífuga, e não centrípeta, ou seja,
devemos, ao produzir essa convergência, oferecer esse conteúdo a todos de
maneira participativa.
Para Lev Manovich (2005), essa convergência existe de maneira
abstrata, inclusive, e sua estrutura é como uma montagem fílmica (para tanto, o
autor compara o processo com a obra O homem com a câmera, de Dziga
Vertov). Dessa maneira, todas as partes terão uma relação entre si, ainda que
complementares. Tal ideia se assemelha à proposta de Marsha Kinder (1991)
ao oferecer à intertextualidade transmídia, onde conteúdos fragmentados e
distintos, mas relacionados entre si, convivem em uma mesma narrativa macro.
Porém, entre todas essas ideias, a que mais justifica a multiplataforma é
a de George Landow (2009, p.49), quem propõe a ideia de hipermídia como
consequente ao hipertexto. Para tanto, oferece um resgate sobre a evolução do
termo hipermídia a partir dos pioneiros do hipertexto. Segundo o autor,
inicialmente as propostas foram distintas do que conhecemos usualmente, mas
de alguma maneira colaborou com a evolução dessa preocupação e,
consequentemente, de sua utilização. Segundo o autor:
Muitos investigadores do hipertexto, inspirados por Bush8,
desenharam e implementaram tais sistemas e infraestruturas
abertas de hipermídia, cuja característica básica na base de
dados de links ou catálogo de links (linkbase) (ver Rizk e
Stucliffe para uma lia de ditos sistemas). Intermídia, um destes
sistemas recorria à separação de links e dados para permitir
aos usuários gerar múltiplas páginas web do mesmo corpus de
textos e imagens, dependendo do direito de acesso de um
usuário individual, ele ou ela pode visualizar as webs criadas
por outros. (LANDOW, 2009, p.49-50)
Do conceito intermídia surge a hipermídia, tendo como base
essas características apresentadas e estudadas por Landow. Esses estudos
direcionam o conceito para uma evolução do hipertexto, onde os links passam
a interligar não somente textos, mas todo e qualquer tipo de mídia adotada,
originando o nome do formato. Ainda assim, para facilitar a leitura de sua obra,
Landow adota as duas palavras como sinônimas, segundo ele proposital (ainda
que de alguma maneira equivocada), em Hipertexto 3.0. E complementa com
uma ideia de que o conteúdo pode ser navegado internamente ou
externamente, mantendo o seu status de hipermídia.
Armazenando links fora do texto, das imagens e de outros
meios, os sistemas abertos de hipermídia podem colocar links
no documento web de outra pessoa sem afetar sequer o dito
documento: Vannevar Bush passeia pela rede. Dependendo
8
Vannevar Bush publicou em 1945, na revista Atlantic Monthly, um artigo que comentava sobre a
necessidade de máquinas de informação de dados se conectarem para a realização de tarefas para os
profissionais dessa época processarem seus dados (LANDOW, 2009, p.33).
dos desejos de quem possui o servidor, estes links acessados
podem ser vistos por qualquer que visita sua página web, ou
melhor possam ser projetados por outsiders. (LANDOW, 2009,
p. 52-53)
Imagino que a adoção de hipertexto e hipermídia como sinônimos
seja porque atualmente é inaceitável uma estrutura que contenha links e não
seja hipermidiática, pois isso seria um insuficiente aproveitamento das
possibilidades narrativas atuais. Entretanto, tal insuficiência é realizada com
frequência por páginas de diversos jornais eletrônicos.
Espaços multiplataforma são ambientes que sustentam as
narrativas transmídia, além de aproveitarem as tecnologias existentes, cada
vez mais integradas. Para tanto, a rede social de comunicação gráfica
Thinglink9 oferece grátis a construção de páginas tácteis com interfaces
animadas e de conteúdo hipermídia em tecnologia HTML5. Tal conteúdo pode
ser agregado a qualquer página a partir de códigos HTML, inclusive em
construções de sites com a mesma linguagem pelo aplicativo Adobe Muse e
em aplicativos grátis para o mesmo fim, como Wix (cf. Metodologia) e Appsbuilder10, este último destinado à produção de aplicações específicas para
smartphones e tablets.
Imagem 10: Interface produzida pelo aplicativo Thinglink.com
9
10
Disponível em http://www.thinglink.com/. Acessado em 19/01/2015.
Disponível em http://www.apps-builder.com. Acessado em 19/01/2015.
Pensar em uma narrativa contemporânea que não seja multiplataforma é
utilizar uma parte das ferramentas disponíveis e provocar uma frustração
cognitiva nos usuários líquidos, como comenta Bauman (2001), ou ignorar as
possibilidades dos “novos novos meios” apontadas por Levinson (2012). Mais
que isso, é perder a oportunidade de desenvolver uma narrativa eficaz e que
alcance
um
maior
número
de
usuários
espalhados
pelo
complexo
comunicacional apresentado aos nossos olhos cotidianamente.
3.5. A navegação interna
Navegação interna é uma construção narrativa a partir de links que
direcionam a atenção do usuário para conteúdos existentes no próprio site ou
na mesma interface. Considero essas duas modalidades para esse trabalho e
adoto esses formatos na proposta narrativa apresentada.
Uma página web pode oferecer caminhos narrativos externos, e isso não
é um erro, ainda que seja prudente colocar um comando HTML (target=
“blank”) para manter a página original ativa e abrir a nova página em outra
base. Tal possibilidade existe até mesmo em blogs, na opção link, para que o
leitor possa navegar sem perder a página original da navegação. Da mesma
maneira, a página não perde sua audiência, possivelmente dissipada pela
navegação.
Lev Manovich (2005) comenta sobre navegação interna como uma
maneira de construção narrativa interativa em páginas web. Também oferece
como um processo semelhante à montagem audiovisual uma possível
navegação no interior da cena, onde o editor “navega” pelo conteúdo
audiovisual disponível para construir sua narrativa cinematográfica. Tal
proposta foi defendida e testada por Renó (2011) ao criar um modelo de
cinema interativo, onde a montagem audiovisual é a base de uma navegação
interna de uma página web para a construção de uma nova narrativa a partir de
fragmentos pré-existentes. A interface da página adotou o conceito de
recordação de semelhança, de Carnap, pois segue um desenho próximo de um
software de edição, ou seja, o usuário tem a sensação, por recordação de
semelhança, que está efetivamente editando um novo vídeo.
O modelo foi desenvolvido a partir de um experimento que contou com a
participação de 112 investigadores sobre audiovisual de sete países (Brasil,
Estados Unidos, Argentina, Equador, Colômbia, México e Espanha). Ao final,
todos consideraram que essa navegação interna, que constava em arrastar os
fragmentos disponibilizados em uma linha do tempo de edição (timeline) e
montar sua nova obra a partir das micro-histórias oferecidas e editadas
previamente.
Imagem 11: Experiência sobre cinema interativo (RENÓ, 2011).
Essa experiência provou a capacidade de navegação interna de uma
página e até que ponto sua interatividade é eficaz. Não uma falsa
interatividade, como comenta e critica Espen Aarshet (1997, p.48), para quem
os termos interativos e interatividade são tão mal empregados que provocam
nele certo pavor ao ler. Para ele, “declarar que um sistema é interativo é
revesti-lo de um poder mágico”. Nessa experiência a interatividade não teve um
poder mágico. A vivência dos participantes foi participativa, de reconstrução de
novos caminhos e particulares experiências, como provaram as estatísticas
obtidas
pelo
algoritmo
de
acompanhamento
de
processos
criado
especificamente para tal atividade.
Ainda dentro do espaço de construções de conteúdos interativos, o
mexicano radicado nos Estados Unidos, Diego Bonilla, criou uma obra
audiovisual com navegação interna que oferece uma participação que também
não oferece uma falsa magia. Denominado A space of time, a obra é
apresentada em um CD ROM que oferece uma navegação semelhante a um
vídeo jogo para construir caminhos dentro de um edifício antigo. Essa
navegação proporciona a recriação de diversas histórias a partir das préexistentes. Para tanto, Bonilla adota a tecnologia Quicktime VR e oferece uma
navegação dentro de uma cena animada.
Imagem 12: A space of time, de Diego Bonilla11.
Processos interativos não são mágicos, e muito menos quando esses
processos ocorrem dentro de uma página. O que presenciamos nos processos
e espaços contemporâneos é a oferta de uma navegação interna pelos tablets
a partir de seus ícones que proporcionam recordações de semelhança
(CARNAP, 2003). Esses ambientes e suas interfaces possuem certo poder
mágico, de extensão máxima (até o momento) do corpo humano, onde o
navegante usuário pode não somente simular um toque, como também tocar
todos os conteúdos digitais existentes na tela do dispositivo. Porém, não
podemos considerar exatamente como uma mágica, mas como uma
construção estética e digital que proporciona alto nível de experiência e, por
sua vez, certa “magia” cognitiva. Uma magia que mudou as formas de pensar e
agir dos usuários, acostumados a mudar de páginas não mais pelas barras de
11
Disponível em
http://www.ladiferencia.org/aec/index.php?option=com_content&view=article&id=2762:a-space-of-timeunespacio-de-tiempo&catid=191:internacional-interactivos&Itemid=346. Acessado em 20/02/2015.
rolagem, mas por um simples click para desenvolver uma navegação horizonta.
Essa é a mágica que nos interessa, e são nesses formatos de navegação
interna que este estudo se apoia.
Imagem 13: Interface tátil de um tablet iPad
Ainda sobre esse tema, Aarshet (1997) propõe que, ao invés de
interatividade, devemos adotar o uso da palavra ergódigo, derivada das
palavras em grego “ergon” e “hodos”, ou seja, trabalho e caminho. De certa
maneira, Aarshet não está totalmente errado, mas creio também que não
precisamos sentir pavor da palavra interatividade por sua má utilização, assim
como não sentimos medo da palavra transmídia, ainda má empregada em
ambientes que são, no máximo, boas produções hipermídia com estratégia
cross-media.
4. Documentário transmídia
4.1. Orientações sobre o tema
A sociedade contemporânea convive atualmente com um novo modelo
de linguagem que oferece conteúdos expansíveis e independentes entre si
distribuídos por uma estrutura multi-linguagem: a narrativa transmídia. Porém,
ainda que academicamente consolidada como linguagem, a narrativa
transmídia ainda apresenta o desafio de estudos sobre sua aplicabilidade nos
diversos gêneros comunicacionais existentes, entre eles o documentário.
Para pensar no documentário transmídia é necessário antes resgatar o
documentário interativo, suas limitações e possibilidades, assim como os
métodos existentes para sua produção. Esse resgate se justifica pela
familiaridade existente entre os dois modelos de documentários. O primeiro,
interativo, propõe a oferta de conteúdos expansíveis e navegáveis, assim como
uma participação – ainda que limitada - na reconstrução narrativa. O segundo,
transmídia, tem as mesmas propostas, mas também apresenta a multiplicidade
de plataformas de linguagem e uma diversidade de mensagens independentes
entre si, mas relacionados um com o outro. Nesse aspecto, também entram
estruturas narrativas que proporcionam uma melhor circulação da obra por
redes sociais. Trata-se de um documentário composto por diversos microdocumentários.
Nesse arcabouço de detalhes é necessário compreender e levar em
consideração conceitos fundamentais para a produção de obras documentais
transmídia (além da definição do próprio subgênero), entre eles a narrativa
navegável possibilitada pela hipertextualidade e hipermidialidade. Também é
fundamental compreender as diferenças entre cross-media e transmídia, pois
ainda que semelhantes essas duas palavras significam finais distintos. Por fim,
é fundamental entender o que é interatividade e, neste sentido, observar os
estágios de evolução entre o documentário interativo e o mesmo gênero a
partir da narrativa transmídia.
Esta pesquisa apresenta um estudo de caso múltiplo analítico de cinco
obras do gênero documentário que apoiam suas narrativas nos conceitos do
transmedia storytelling para que um experimento fosse desenvolvido. Das cinco
obras,
três
delas
foram
produzidas
em
ambientes
digitais
(Galego-
português12(2013), Calles perdidas13(2013) e Hollow14 (2013)), e as outras
duas (Morreu o Demo, acabouse a peseta15 (2012) e Tras los passos del
hombre bestia (2013)) a partir de plataformas físicas ou múltiplas. Essa
diversidade de plataformas tecnológicas demonstra que a tecnologia não
assume papel imprescindível na construção da narrativa transmídia, pois tratase de uma construção de linguagem, e não de um discurso meramente
tecnocêntrico. Neste estudo são propostos modelos básicos de produção de
documentários transmídia. O objetivo é oferecer subsídios a produtores de
documentários para que estes possam experimentar suas obras no campo do
transmedia storytelling.
O primeiro termo a ser compreendido é o próprio documentário
transmídia, pouco conhecido pela atualidade de sua existência. Entretanto, o
documentário em suas origens era transmídia (RENÓ, 2013), num momento
em que os documentaristas realizavam expedições de exploração e em
seguida preparavam exposições foto-documentais com diversidade de
plataformas de comunicação. O documentário transmídia resgata essa
essência original do registro documental, proporcionando ao usuário uma
navegação (analógica ou digital) por múltiplos espaços e linguagens
comunicacionais que ampliam o processo cognitivo. Trata-se de um novo
formato de produção que não exclui nem invalida o tradicional. Apenas oferece
uma nova condição para o espectador/usuário e um novo desafio para o
produtor, que agora deve pensar na obra como algo amplo, além da linguagem
audiovisual.
Mas é de fundamental importância a compreensão sobre hipertexto,
hipermídia e interatividade antes de pensar em observar o documentário
transmídia, pois estes termos estão diretamente relacionados à construção
narrativa deste que podemos definir como subgênero comunicacional, derivado
do documentário tradicional e de outros gêneros, até mesmo pela característica
que marca a narrativa transmídia.
12
Disponível em http://www.denisreno.wix.com/galegoportugues. Acesso em 19/06/2014.
Disponível em http://www.documedia.com.ar/callesperdidas/. Acesso em 19/06/2014.
14
Disponível em http://www.hollowdocumentary.com. Acesso em 10/07/2014.
15
Disponível em http://www.ouff.org/web/index.php/content/view/5569/393/lang,galician/. Acesso
em 19/07/2014.
13
Hipertexto e hipermídia são termos que demonstram um processo de
desenvolvimento do primeiro. Hipermídia deriva do hipertexto, diretamente, e
são relacionados entre si com os mesmos princípios de linguagem,
modificando apenas os formatos de “textos” utilizados (BAKHTIN, 1986). O
termo hipertexto foi definido por Ted Nelson (LANDOW, 2009) e refere-se à
construção narrativa expansível, navegável, que conecta discursos textuais por
nós neurais. A ideia é ampliada por Aspen Aarshet (2005: 95) como
“ferramenta para a mente” por sua capacidade de criação de novas estruturas
a partir da navegação pelos nós neurais.
Já
o
termo
hipermídia
difere
do
anterior
pela
sua
estrutura
multiplataforma (LANDOW, 2009), que oferece a conexão entre discursos
textuais, sonoros, audiovisuais, imagéticos e outros mais, como animação,
infográficos, etc, também por nós neuras e caminhos navegáveis, denominado
por alguns autores como multimídia. Entretanto, George Landow (2009) discute
a pertinência de se adotar nos dias de hoje o termo multimídia (analógicos) por
considerar que os processos criativos e de produção neste caso são
divergentes dos adotados desde o advento do digital, que para ele recebe o
nome de hipermídia. São termos parecidos, mas segundo o autor merecem
diferenciação. Tal ideia é complementada por Tony Feldman (1995, p.48) como
“a integração sem suturas de dados, textos, imagens de todas as espécies e
sons dentro de um ambiente de informação”.
Neste aspecto de semelhança de termos e significações, há uma
constante confusão de interpretação entre dois termos parecidos, mas
divergentes: cross-media e transmídia. Enquanto o primeiro representa a
construção de uma estratégia comunicacional que consiste na distribuição de
um mesmo discurso adaptado em diversas plataformas, o segundo propõe a
construção de conteúdo expansível a partir de diferentes discursos –
independentes entre si - por distintas plataformas e que em conjunto constroem
um novo discurso (RENÓ, 2013). Tal confusão é prevenida por Henry Jenkins
(2001), que imaginava em um determinado momento esse nivelamento de
significados por parte de correntes teóricas. Realmente, são nomes que
sugerem resultados iguais, mas na realidade possuem significados e
aplicações divergentes.
Finalmente, um termo fundamental para compreender o documentário
transmídia é a interatividade. Ainda que conhecido e difundido, o termo
enfrenta diferenças de interpretação por diversos teóricos, e ainda há correntes
que discordam de sua existência, como o brasileiro Alex Primo (2007), para
quem o correto é interação, ou seja, ação entre pessoas. Entretanto, Renó
(2011) defende que interatividade é um termo correto também, pois o mesmo
se refere à atividade do homem com a máquina. O teórico Andrew Cameron
(apud SHAW, 2005, p.372) propõe uma maneira bastante simples e eficaz de
se compreender em que consiste a interatividade. Segundo o autor, em
processos interativos o usuário consegue obter novas experiências através de
novos caminhos. Trata-se de uma reconstrução constante de novas estruturas
de leitura a partir dos interesses e das decisões dos usuários. Porém, Lev
Manovich (2005) propõe que dentro das diversas possibilidades interativas
existem níveis distintos a partir de sua capacidade de participação. Para o
autor, que define esses níveis basicamente como abertos e fechados, a
interface é fundamental neste processo.
4.2. Multi-hiper-trans
Ainda que denominado pelo próprio realizador Fernando Irigaray e o
grupo coordenado pelo mesmo na Universidade Nacional do Rosário (Rosário,
Argentina) como um documentário multimídia interativo, a obra Calles perdidas
possui uma aproximação ao transmídia em diversos aspectos. O mais
expressivo deles é a multiplataforma de conteúdos, cada um com discursos
complementares e interligados entre si. Encontramos textos, fotos e vídeos,
além de infográficos e linha do tempo com visualização animada. Os vídeos
foram publicados no YouTube (ver imagem 15), o que determina parte de sua
distribuição por redes sociais, como define como requisito Vicente Gosciola
(RENÓ e FLORES, 2012). Entretanto, para que o documentário seja
essencialmente transmídia, falta a possibilidade de circular por redes sociais a
partir dos usuários.
Imagem 14: Interface principal documentário “Calles perdidas”.
No que se refere à interface, o documentário apresenta um conceito
simples e que constrói a relação entre o usuário e o conteúdo a partir do que
Manovich (2005) denomina como interface arbórea (imagem 14). Porém,
distribui a navegação de maneira vertical, o que segue na contramão da
usabilidade de dispositivos móveis (RENÓ, 2013). Ainda assim, é de simples
navegação e atende ao que Carlos Scolari (2004) define como interface semiocognitiva.
Um problema sobre a questão técnica foi apresentado na construção da
interface para dispositivos móveis (imagem 15). A distribuição espacial não
contempla tablets e smartphones da Apple, o que é ruim para a acessibilidade.
Entretanto, isso é de fácil solução e considero que o objetivo do estudo foi
desenvolver linguagem, e não tecnologia, e neste sentido a obra cumpre seu
papel de maneira eficaz.
Imagem 15: Problema de ajuste de interface para dispositivos Apple.
A obra se enquadra no modelo definido neste trabalho como
estruturado, ideal para documentários de caráter jornalístico. Neste sentido,
Calles perdidas alcança seu objetivo com êxito, pois oferece conteúdo
informativo reflexivo e com dados resultantes de investigação jornalística. Além
disso, o usuário navega pelo conteúdo para obter informações sobre algo, e
não como entretenimento e por essa característica não se incomoda com o
sistema de navegação vertical. O formato estruturado é menos navegável e
expansível, ainda que ofereça certo nível de interatividade. É recomendável
para conteúdos jornalísticos por não permitir que o processo cognitivo
confunda-se com uma experiência essencialmente lúdica.
4.3. Transmídia “analógico”
Um grupo de produtores audiovisuais de Santiago de Compostela
(Galícia) que integra a Tintiman Audiovisual lançou no final de 2012 o
documentário audiovisual Morreu o Demo, acabouse a peseta, legendado em
sete idiomas e que discute a história do personagem da cultura popular galega
Barriga Verde, representado por teatro de fantoches (títeres).
Naquele momento, uma das produtoras da obra, Comba Campoy,
participou
de
uma
oficina
sobre
narrativa
transmídia
realizado
pela
Universidade de Santiago de Compostela em parceria com o grupo Real_Code
(Rede
Europa,
América
Latina
de
estudos
sobre
Comunicação
e
Desenvolvimento), e dessa oficina surgiram ideias de reformular o projeto do
documentário. As mudanças caminharam para a construção de uma narrativa
voltada aos conceitos do transmedia storytelling, com apoio em espaços e
discursos em ambiente digital e em espaços analógicos.
Imagem 16: Livro documentário transmídia Morreu o Demo, acabouse a peseta.
Além do documentário em plataforma audiovisual, que contou com
participações em diversos festivais europeus desde sua estreia, a obra ganhou
novas plataformas. O documentário passou a ser construído com um livro
sobre a história do personagem Barriga Verde (imagem 16), um pôster caricato
sobre os personagens da tradição (imagem 17), o documentário audiovisual em
formato DVD e ainda constam no projeto a criação de um videojogo sobre o
Barriga Verde e páginas em Facebook que contam e dão vida aos
personagens do documentário, que serão lançados até o final de 2013.
Imagem 17: Pôster sobre personagens do documentário transmídia.
Por fim, a obra foi divulgada com um trailer publicado na rede social
audiovisual Vimeo16. A escolha por essa rede social audiovisual surgiu pela
qualidade de imagem oferecida, ainda que a página seja menos popular que o
YouTube.
O documentário está posicionado em uma condição interessante quando
comparados com os exemplos estudados. Sua origem está no documentário
tradicional, mas que ganha força na narrativa transmídia para terminar de
contar a história que não coube no DVD e nem na narrativa audiovisual
desenvolvida. Para tanto, busca uma maior participação e experiências de
navegação cognitiva pelos conteúdos oferecidos. Além disso, busca uma
consolidação como produto documental informativo e lúdico ao mesmo tempo,
graças à estratégia de construção de um videojogo.
16
Disponível em http://vimeo.com/45668248. Acessado em 20/06/2014.
Esse modelo é definido por este estudo como análogo-digital, pois
valoriza essas duas condições como fundamentais para a construção narrativa
ideal. Consiste em mesclar os dois formatos em uma única produção,
considerando estratégias e linguagens dos dois na construção narrativa. Por
essa razão, ao assistir o documentário em DVD percebemos que a estética
adotada é apropriada para exibição em telas maiores que em um tablet ou
smartphone.
Essa estratégia pode ser adotada na adaptação e/ou ampliação de
obras documentais tradicionais para a narrativa transmídia e, dessa maneira,
ampliar a circulação da informação oferecida e oferecer uma segunda vida à
história produzida anteriormente.
4.4. Exploratório transmídia
Um terceiro exemplo de documentário transmídia é a obra Galegoportuguês, que aborda a relação cultural e idiomática existente entre galegos e
portugueses. Relação que surge nos primórdios das duas regiões e presente
atualmente entre os cidadãos desses rincões, especialmente do norte
português.
Porém, a construção desse documentário foi experimental e levou em
consideração princípios fundamentais para a narrativa transmídia. Quase todo
o documentário foi produzido a partir de dois dispositivos móveis: um iPad 2 e
um iPhone 4, desde o roteiro de pré-produção até a edição de fotografias e do
vídeo. Dessa maneira, foram contempladas as preocupações sobre mobilidade
propostas por Marc Augé (2007) e também por Paul Levinson (2012), para
quem os “novos novos cidadãos” constroem espaços dos “novos novos meios”
e possuem uma especial relação com seus dispositivos móveis.
Efetivamente, a produção total ou quase em sua totalidade a partir de
dispositivos móveis não é uma condição para que o conteúdo seja transmídia,
e nem o transforma em tal narrativa. Entretanto, a opção por essa forma de
produção foi igualmente posta como desafio do experimento, que também
considerou a distribuição e a opinião de participantes via Facebook, positiva em
seus resultados. Na ocasião, 53 pessoas confirmaram a participação,
sinalizando uma aprovação da proposta, além de nove comentários sobre a
obra, todos positivos também. Ainda que o número seja inexpressivo, o fato de
receber esse feedback em menos de cinco horas depois da publicação sinaliza
uma força importante nas redes sociais.
O
documentário
levou
em
consideração
os
princípios
citados
anteriormente neste texto sobre a origem da produção documental a partir da
fotografia (RENÓ, 2013), e para isso construiu uma “instalação documental” na
internet, reunindo em uma única página todos os conteúdos. Para tanto,
adotou-se como tecnologia de produção da página o aplicativo grátis Wix.com,
que oferece tecnologia HTML5 na construção, e o aplicativo também gratuito
ThingLink.com, que possibilita a instalação de links dentro de uma imagem.
Com isso, tornou-se possível a produção de uma interface navegável e sem
barra de rolagem, permitindo ao usuário uma navegação tátil e centrada na
visualização geral (imagem 18).
Imagem 18: Interface do documentário Galego-português.
Nesta composição, foram produzidos um vídeo documental que reuniu
declarações de galegos, portugueses, espanhóis e brasileiros sobre a relação
existente entre as duas culturas. O vídeo foi produzido pelos dois dispositivos,
desde a gravação até a edição final. Além disso, foram disponibilizadas
fotografias de Aveiro, Porto, Covilhã e Santiago de Compostela, todas
registradas a partir de iPad e iPhone e editadas no aplicativo Adobe Photoshop
Express.
Imagem 19: Interface com exposição das fotografias.
Na composição do conteúdo também foram oferecidos links para escutar
músicas portuguesas e galegas enquanto navegava-se pela página, além de
dois mapas que ilustravam a situação das duas regiões no passado (quando
conformaram um mesmo território) e atualmente. Para reforçar essa
informação, dois ícones com abertura de textos relacionados a informações
geopolíticas foram distribuídos na interface.
O conteúdo textual foi oferecido a partir de um link para uma publicação
de uma crônica sobre a descoberta dessa semelhança cultural em um blog,
produzido também com a utilização de um iPad. Por fim, para complementar
esses conteúdos, foi produzido um comic que ilustrava o diálogo entre
portugueses e galegos no dia-a-dia (imagem 20), enquanto caminhavam pelas
ruas de Santiago de Compostela. Neste sentido, Carlos Scolari (2013) define
de maneira interessante a adoção de comics em ambientes transmídia,
justificando que trata-se da história contada por outros olhares. A adoção de
comic em um documentário é uma tendência impressa também em obras com
narrativas tradicionais.
Imagem 20: Comic produzido para o documentário.
Esse formato de documentário apoia-se no modelo denominado por
esse estudo como visualização navegável, pois oferece os conteúdos para
navegação em um único ambiente. O diferencial deste modelo em comparação
com os outros é uma mais simples navegação, além de oferecer todas as
possibilidades interativas em um único espaço. Entretanto, vale ressaltar que o
fato de ter sido produzido totalmente a partir de telefones celulares se justifica
pelo desafio, o que não impede novas produções a partir de dispositivos
convencionais.
Ainda que seja um primeiro estudo na tentativa de definir alguns
modelos de produção de documentários transmídia, esta investigação não
possui uma conclusão definitiva, e nem tem essa pretensão. A intenção ao
definir alguns modelos é somente para exemplificar como podem ser
justificados tais modelos em futuras produções.
A falta de definição de formatos é uma máxima quando se pensa em
narrativa transmídia. Afinal, a criatividade é uma marca nesta linguagem. .Além
disso, o gênero documentário é uma obra artística, ou seja, não há como definir
formatos limitados de produção.
Considero que essas definições de modelos podem auxiliar a
compreender que um documentário transmídia não exige uma circulação
exclusivamente por ambientes digitais, pois trata-se de uma linguagem, uma
maneira de contar a história. Exemplo disso é o documentário Morreu o Demo,
acabouse a peseta, que pretende finalizar a série de extensões narrativas com
“textos” em ambientes digitais. Entretanto, todos os outros fragmentos
oferecidos pela obra estão em plataforma analógica, como livro, DVD (ainda
que seja registrada de forma digital, essa plataforma é considerada neste texto
como analógica por materializar-se em um disco).
Outra consideração refere-se às limitações de interface e de narrativas
existentes na obra Calles perdidas, que oferece uma estrutura definida como
multimídia pelo próprio autor, mas que ao final de sua estrutura revelam uma
narrativa transmídia que contempla conteúdos jornalísticos em sua navegação.
Ainda que faltem links para redes sociais, essa produção (desenvolvida
também em caráter experimental) aproxima-se do ideal transmídia.
Por fim, dentro dos parâmetros compreendidos para a narrativa
transmídia, considero que o ideal em modelo navegável e expansível para a
construção de um discurso documental é proposto pela obra Galego-português,
ainda que a plataforma apresente problemas tecnológicos por se tratar de
aplicativos em modalidade gratuita.
Porém, o fundamental nessa conclusão é entender que o documentário
transmídia, assim como obras do gênero documentário por linguagem
tradicional, não consegue ajustar-se a um único modelo, como justifica Bill
Nichols (1997). A mescla entre linguagens e formatos é uma marca do
documentário, segundo o autor, e se justifica pela liberdade da criação artística.
Dessa maneira, convido novos pesquisadores e produtores a arriscarem nessa
realidade que está apenas começando e que tem muito a expandir no campo
da produção audiovisual que oferece ao expectador discursos navegáveis de
realidade: o documentário transmídia.
4.5. Navegação territorial
Há uma discussão no campo do documentário transmídia que passa por
uma definição fundamental do transmedia storytelling, apresentado por Henry
Jenkins (2001) sobre conteúdos multiplataforma. Ainda que a tradução ao
português justifique a compreensão sobre uma diversidade de plataformas
físicas, a proposta de Jenkins refere-se a uma diversidade de plataformas de
linguagem, e não como foi interpretado a partir das traduções simplistas dos
originais em inglês. Mas, apesar disso, algumas obras são apoiadas no
conceito equivocado, e o mais destacado exemplo disso é o documentário
“Tras los passo del hombre bestia” (2013), dirigido e produzido por Fernando
Irigaray e seu grupo, da Universidade Nacional de Rosário, Argentina.
A obra oferece uma navegação que não depende do espaço digital,
unicamente. Uma das justificativas para essa opção é uma interpretação
conceitual de seu diretor, que considera condicional para uma construção
narrativa transmídia a territorialidade, ideal para construir o projeto a partir de
uma obra audiovisual originalmente linear.
Imagem 21: Cena do documentário Tras los pasos del hombre bestia (2013).
No projeto, além do vídeo, foram realizadas ações exteriores pelas ruas
de Rosário, Argentina. Mas tudo isso também foi apoiado por exibições de
vídeos produzidos essencialmente para YouTube e que direcionam as
atividades exteriores (complementares, mas com histórias totalmente distintas
do documentário audiovisual).
Imagem 22: Ações pela cidade para promover o videogame online.
Os vídeos apresentam como personagem principal o detetive Marcelo
Colman, que no vídeo original é secundário, mas no YouTube ganha força
como protagonista das ações. Marcelo, que tem esse nome em sua vida real, é
um jornalista que, curiosamente, estudou diversos cursos a distância, entre
eles o de detetive, Acaba ganhando notoriedade pela cidade como o
personagem do documentário.
Além disso, informações para condução de um videogame online foram
publicadas em pontos específicos pela cidade a partir de código QR,
promovendo aos participantes uma navegação exterior. Por essa razão, o
formato é denominado navegação territorial e tem uma valorização
importante porque consegue envolver os participantes em ambientes não
somente virtuais, mas também territoriais.
4.6. Os nós neurais transmidiáticos no documentário Hollow
Hollow é um documentário transmídia que representa as diversas
possibilidades do subgênero. Produzido, escrito e dirigido pela norte-americana
Elaine McMillion Shedon, a obra tem como proposta discutir questões
relacionadas ao interior de West-Virginia, desde o êxodo rural norte-americano
pós-guerra à cultura sobrevivente no local. Além disso, a região onde são
captadas as as imagens é formada por um vale entre montanhas, ou seja, um
hollow17 geográfico, como explicado na introdução da obra. Para tanto, Elaine
cria uma obra que oferece, em uma única plataforma midiática (o computador,
exclusivamente conectado pelo navegador Google Chrome) uma diversidade
de plataformas de linguagem que vai desde textos e citações, fotografias,
vídeos, áudio, mapas interativos e infográficos, até uma estética de bricolagem
de camadas, comum em algumas animações infantis.
O nome do documentário – Hollow – acaba sendo incompatível com o
seu papel no campo da narrativa transmídia, pois a obra preenche um vazio
(uma das possíveis traduções da palavra) existente até então. O documentário
Hollow oferece, em um único espaço, a multiplicidade de plataformas proposta
por Jenkins, além de apresentar a navegação entre nós neurais comentado por
Manovich (2005) e confirmado por Renó (2011), o que transforma a obra em
um documentário essencialmente transmídia. Entretanto, a documentarista vai
além, ao ampliar a discussão às mídias sociais e também à maneira de
financiamento de obras – crownfunding -, que conta com uma rede de contatos
para alimentar financeiramente o projeto.
A proposta estética do documentário é apoiada na apresentação
multiplataforma de conteúdos diversos, sejam eles estáticos ou dinâmicos.
Além disso, a obra apresenta conceitos de transição entre subplots18
suportados em fotos subjetivas ou imagens de apoio, em alguns casos
apresentados a partir de camadas em movimento, conforme imagem a seguir.
17
Hollow significa oco, vazio, em português.
Uma história audiovisual é construída a partir de um plot e de seus subplots. Segundo Renó
(2011), plot é a espinha dorsal da narrativa cinematográfica, e os subplots são os desdobramentos em
novas histórias encontrados como consequência do plot.
18
Imagem 23: Sequências que representam transições imagéticas por camadas.
A qualidade estética apresentada oferece uma diversidade de “textos”
dentro de uma intertextualidade na construção narrativa, o que facilita e
diversifica o entendimento da história. No documentário, percebemos o diálogo
entre textos e ilustrações feitas pelos personagens, o que representa a
participação dos mesmos no testemunho dos fatos. Essa estratégia
proporciona uma diversidade artística e um teor lúdico no documentário, algo
interessante para uma melhor absorção das mensagens.
Imagem 24: Sequência com intertextualidade em Hollow.
Conforme Renó e Gonçalves (2011), a intertextualidade é fundamental
na construção de uma eficaz narrativa audiovisual. A diversidade de textos é,
inclusive, uma realidade histórica no cinema, ainda que pouco aproveitada no
documentário. Hollow adota esse diálogo textual em sua narrativa, alterando
essa realidade.
Outra estratégia adotada pelo documentário – a construção de
conteúdos multiplataforma independentes, mas complementares, caracteriza a
obra como um documentário transmídia (cf. Imagem 25), ainda que a produtora
Elaine McMillion o define como documentário interativo. Segundo Renó (2013),
o documentário transmídia deve oferecer essa diversidade de plataformas de
linguagem para ampliar as possibilidades de navegação e cognição. Hollow
oferece, além da navegação dentro do conteúdo - ou no interior da cena
(MANOVICH, 2005) -, uma navegação externa, com acesso a outras páginas
na internet com informações complementares. Para tanto, adota diversidade de
cenas estáticas (fotografias) com vídeos tanto em transições como em
conteúdos específicos da obra.
Imagem 25: Nós neurais para conteúdos complementares internos às cenas.
Outra característica de navegação e complemento de conteúdos
presente no documentário pode ser constatado a partir de retroalimentação por
parte dos usuários. Trata-se de uma essência do documentário transmídia
(RENÓ, 2013), ou mesmo da narrativa transmídia (GOSCIOLA, 2012).
Podemos perceber essa característica numa cena do documentário em que a
narrativa questiona o usuário com as perguntas: “Você já teve que sair de casa
para encontrar oportunidade? De onde você sair? Para onde você viajar?
Quantos anos você tinha?”. Cada pergunta oferecia uma tabela para que o
usuário preenchesse (se assim decidisse) e enviasse à página (cf. Imagem 26).
Em seguida, oferecia também a oportunidade de acompanhar os resultados
estatísticos já alcançados com essa possibilidade.
A participação é algo fundamental no documentário transmídia. Ele faz
com que o usuário faça parte do processo de reconstrução da história, não
somente pela reorganização e pelo processo criativo da navegação (RENÓ,
2011), como também no resultado da mesma, seja ela pelo comentário ou,
como é o caso, pela contribuição a partir de respostas apresentadas
posteriormente a outros usuários.
Para tanto, devemos considerar o que vem a ser interatividade. Ainda
que diverso autores discutam o que vem a ser um processo interativo, inclusive
com algumas discussões defendendo que interatividade não existe – e sim
interação (PRIMO, 2007), adotamos neste estudo o conceito de que
interatividade é a obtenção de um mesmo resultado por diversos caminhos
que, por sua vez, oferecem diferentes experiências. No caso dessa obra, o
resultado único é o processo de assistir ao documentário.
Imagem 26: Cena com tabela para participação e retroalimentação em Hollow.
A diversidade de informações a partir de novas plataformas também
está presente na obra. Hollow utiliza de maneira intensa de infográficos com
hipertextos, e
aumenta essa
informação
com
uma
“provocação” de
participação/consulta do Twitter pelo usuário. Isso se vê presente numa
sequencia que fala sobre a aproximação de uma forte tempestade e seus
dados.
Essa navegação externa e o suporte do Twitter para tal tipo de
fenômeno foi presenciado em outras situações de catástrofe natural nos
Estados Unidos, como os furacões Isaac e Katrina (cf. Imagem 27), esse último
com um volume de pedidos de socorro ao Corpo de Bombeiros de Nova Iorque
pelo Twitter superior ao convencional, pelo telefone.
Imagem 27: Intertextualidade e Twitter para narrar a tempestade.
Hollow também adota o uso de imagens produzidas pelos próprios
entrevistados a partir de dispositivos móveis na construção da narrativa. Para
tanto, identifica as diferentes imagens em movimento com créditos quando são
de autoria externa. Essa é uma característica do documentário transmídia
(RENÓ, 2013), pois envolve a mobilidade não somente na exibição, com
também no processo produtivo.
Despreocupada com a qualidade estética do conteúdo apresentado
como algo exclusivo, Elaine McMillion diferencia de maneira clara as diferentes
origens de imagens em movimento, não somente pelos créditos, mas também
pelo tamanho da janela de projeção no interior da cena. As imagens de
terceiros são exibidas em uma janela menor e provem de um ícone diferente no
interior da cena de base.
Imagem 28: Cena com imagem de autoria da entrevistada.
Por fim, percebemos no documentário uma característica interessante
sobre a preocupação em assinar a obra. O usuário não é obrigado a assistir
aos créditos, fazendo-o somente se decidir. Caso queira, abre uma nova janela
com os créditos visualizados a partir da barra de rolagem, como toda a obra.
Com esse estudo, percebemos que Hollow é um documentário
transmídia elaborado previamente e a partir de uma roteirização eficaz dentro
dos parâmetros da narrativa transmídia. A multiplataforma é uma característica
fundamental da obra que, além disso, apresenta arte e criatividade na
construção narrativa.
Hollow pode modificar os horizontes do documentário transmídia. Ele
materializa todos os conceitos já definidos por pesquisadores sobre o tema,
fazendo com que essas ideias sejam testadas e, neste caso, aprovadas com
êxito. A narrativa possui uma navegação suave do começo ao final e a busca
por novidades dentro da tela (navegação no interior da cena) é uma
provocação constante, ainda que sutil.
A verdade foi revelada durante toda a obra, proporcionando ao usuário
conclusões reais sobre os temas abordados. Ao mesmo tempo, a narrativa
oferece traços de gamificação em sua navegação, tornando a experiência
lúdica e não-linear. Isso é o que Manovich (2005) indica como fundamental
para um processo interativo. Tal proposta também é apresentada por Lorenzo
Vilches (2003), para quem a migração digital deve ser acompanhada de
processos participativos.
Um valor destacado do documentário é a qualidade estética. Ainda que
o mesmo tenha sido produzido por uma equipe reduzida, a qualidade artística
apresentada é elevada. Além disso, a mistura e a diversidade de conteúdos
complementares, mas independentes, merece comentário. As transições e os
movimentos internos realizados a partir de camadas com fotografias recortadas
proporciona à obra um dinamismo muito além do que poderia obter-se com a
exclusiva adoção de imagens em movimento. Essa movimentação sai da
normalidade, o que provoca atenção do usuário no momento em que assiste à
obra.
Algo novo também apresentado no documentário foi o convite à leitura
externa, a partir de hashtags sobre a forte tempestade. Ainda que fosse um
acontecimento antigo, esse convite pode ter gerado interesse em alguns
usuários do documentário. Constatou-se, na pesquisa, que tal navegação é
possível e interessante.
Uma inovação apresentado pelo documentário Hollow foi o convite à
participação concreta do usuário na construção da história. Esse processo
construtivo não se limita à definição do roteiro de leitura (RENÓ, 2011), e sim à
construção de um conteúdo a partir da retroalimentação. Trata-se de um
produto do género documentário efetivamente participante da nova ecologia
dos meios, onde o “new new citizen” (LEVINSON, 2012) busca uma
participação constante nos processos midiáticos.
Por fim, devemos observar o valor do documentário pela construção do
roteiro. Lev Manovich (2013; 2005) aponta para a importância em definir
algoritmos de navegação em obras interativas, e percebemos a existência de
funções algorítmicas na obra. Vale ressaltar que algoritmo (RENÓ, 2011) é um
conjunto de atividades finitas e ou infinitas criadas para realizar uma tarefa, não
limitadas a comandos binários, ainda que em Hollow percebemos vários
comandos existentes. Sobre essas atividades pré-definidas no roteiro, Vicente
Gosciola (2008) compartilha com Denis Renó (2011) ao afirmar que tal
planejamento é fundamental para que a produção tenha êxito. Esse plano de
navegação
deve
ser
desenvolvido
da
melhor
maneira
possível,
preferencialmente visualizável por fluxogramas (RENÓ, 2011).
Hollow é uma contribuição importante não somente para o documentário
em si, mas também para a produção de conteúdos construídos para narrativas
de realidade apoiados ao transmedia storytelling. Esse tipo de construção
narrativa é criticado por correntes conservadoras da comunicação, pois
questiona-se o fim da autoria. Para tanto, Renó (2011) aponta para a existência
de uma nova relação entre autor e público: a coautoria.
5. Entre a mensagem e o usuário
A história da comunicação foi construída a partir da relação entre a
notícia e o usuário, especialmente em sua construção. Nesse caso, o usuário
assumiu, historicamente, a função de fonte de informação, possibilitando a
existência da mesma. Entretanto, com o desenvolvimento das tecnologias
digitais, especialmente a web 2.0, essa relação ganhou força. Os usuários
passaram a produzir “notícias” com seus dispositivos eletrônicos de gravação
de vídeo e áudio e ganharam espaços para a distribuição desses conteúdos
informativos na rede internacional de computadores. Tais atividades foram
responsáveis pelos registros e as informações sobre a revolta conhecida como
Primavera árabe, com a exibição de vídeos sobre o que acontecia na região
por canais de YouTube, além de sua repetição em blogs e em redes sociais
tradicionais, como o Facebook. Outros acontecimentos também circularam
pelas redes sociais graças a essa mudança tecnológica, como os conteúdos
produzidos pela blogueira cubana Yoani Sanchez, que nos momentos de maior
censura encontrou como alternativa a produção de textos totalmente a partir de
SMS, direto de seu celular.
No parágrafo anterior apresento a palavra “notícias” entre aspas e há
uma justificativa dessa representação, apesar de tal denominação provocar
polêmicas que não fazem parte da proposta desta investigação. Ainda que Dan
Gillmor (2005) conceitua de maneira sólida a utilização de notícia aos
conteúdos cidadãos, denominados pelo autor como jornalistas cidadãos, e que
Oscar Espiritusanto e Paola Gonzalo Rodríguez (2011) apresentam novos
dados sobre essa prática que cresce na sociedade em gera, não entrarei nesse
tema, ao menos neste texto, por não considerar pertinente ao estudo
desenvolvido.
Esse capítulo oferece os resultados práticos do experimento a partir de
patamares teóricos também sobre o tema e também os processos evolutivos
da investigação com relação ao estudo da interface e, a partir dele,
desenvolver os documentários interativos com a interface ideal. Para tanto, são
oferecidos conceitos pontuais sobre a proposta, especialmente no que diz
respeito aos caminhos de leitura visual e às tendências de construção narrativa
por interfaces, além do formato definido e como é a relação da notícia sensível
ao toque com o usuário contemporâneo.
5.1. Formatos de interfaces
Interface é, como vimos anteriormente (capítulo 4), uma linguagem onde
a distribuição do conteúdo ocorre visualmente. Trata-se de uma organização
instrumental ou de mensagem encontrada em diversas partes, como um livro
(onde a interface oferece informações através da combinação de letras e
palavras), um relógio (que apresenta informação horária através de ponteiros,
quando é analógico, ou de números, quando é digital), um painel do carro (que
coloca ao alcance os comandos do veículo) e, entre outras interfaces, o
computador, especialmente dispositivo móveis, objeto desse estudo.
Mas a interface não é somente uma distribuição de instrumentos. Seria
muito simplista pensar dessa maneira. Interface é um sistema comunicacional
que, a partir de ideias de Rudolf Carnap (2003), pode ser obtida a partir de uma
elaborada estrutura que explora recordações de semelhança. De acordo com
Lev Manovich (2005), pode ser definida como a relação entre o usuário e os
conteúdos interativos. Por fim, de acordo com Carlos Scolari (2004), pode ser
definida por um eficiente ambiente que apoia seus processos de mensagem no
conceito de estrutura semio-cognitivo, ou seja, semiótico simultaneamente a
cognitivo. Trata-se de algo transparente, mas que sabemos que está presente,
como o ar que respiramos. Não o vemos, mas sabemos que ele está entre nós,
adentrando em nossos pulmões.
A escolha do modelo de interface nesta pesquisa foi definida pelo que
Scolari (2004) define como metáfora do espaço, ou o diálogo entre usuários
“new new citizens” (LEVINSON, 2012) e do conteúdo digital. Esta é a principal
característica da narrativa transmídia, onde a circulação de conteúdo para
redes sociais (nesse caso, um diálogo fundamental entre os cidadãos) é
responsável pela construção e reconstrução da informação.
O mais importante para a escolha da interface ideal, especialmente pelo
dispositivo de toque, é considerar a teoria apresentada por Marshall McLuhan
(2005), que os equipamentos tecnológicos são uma extensão do corpo
humano. A interface digital para dispositivos touch é uma extensão sensível e
cognitivamente real. Entretanto, a preocupação nesse estudo foi descobrir
como distribuir os objetos virtuais na tela para que o usuário pudesse navegar
com procedimentos naturais, com uma transparência, mas perceptível,
consciente.
Para tanto, foram analisadas as propostas desenvolvidas por Carlos
Scolari (2004), quem oferece de maneira muito clara as possibilidades de se
construir ambientes informativos a partir de uma plataforma que assume a
função fronteiriça entre o usuário e o conteúdo navegável, mas também temos
que levar em consideração o que o autor denomina próteses invisíveis. Para o
autor:
A aplicação da metáfora da prótese às interfaces entre o
homem e as máquinas digitais permitiu um especial
enriquecimento teórico da metáfora instrumental, a qual
terminou por recombinar-se com uma teoria protética dos
objetos. Mas, o que é uma prótese? Uma prótese é um
dispositivo que substitui um órgão ausente. (SCOLARI, 2004,
p.61)
Essa interface protética também pode ser um obstáculo. Segundo Don
Norman (1989, p.210), quando nos preocupamos excessivamente com a
interface, ela se transforma em “um obstáculo que se coloca entre a pessoa e o
sistema em uso”. Para tanto, Alan Kay propõe uma relação entre a interface e
as propostas de McLuhan. Para Kay (1989, p.192 apud SCOLARI, 2004, p.47):
Quando li Understanding Media, de McLuhan, entendi que, nos
meios de comunicação, a coisa mais importante é que a
mensagem recebida é na realidade a mensagem recuperada;
qualquer pessoa que deseja receber uma mensagem através
de um meio deve antes incorpora-lo de maneira tal que o possa
“subtrair” para deixar somente a mensagem. Quando disse “o
meio é a mensagem” quer dizer que um deve transformar-se
em um medium para poder utiliza-lo.
Sobre o tema, Scolari (2004, p.65) propõe, baseado em McLuhan, que
“o usuário deve transformar-se em parte da interface-meio”. Entretanto,
devemos colocar em análise tanto a ideia de Kay como de Scolari com relação
ao usuário contemporâneo ou mesmo à ideia de que o meio é a mensagem
atualmente, pois o meio perdeu seu poder frente à mensagem. Agora,
subtraímos o meio tanto na hora em que recebemos as mensagens como no
momento em que produzimos as mensagens. Elas são autônomas,
independentes e capazes de definir os meios a partir de si, ou seja, “a
mensagem é o meio” na contemporaneidade comunicacional.
Para justificar a escolha pela interface espacial como a mais
competente para a proposta desta investigação, replico uma citação de
Anceschi (1993, p.49) selecionada por Scolari (2004, p.70):
A interface é o lugar da interação. Ou mais precisamente: é na
Interface onde têm lugar as interações. O autor do dispositivo
de interações e de sua interface é o urbanista deste lugar, o
que o plasma e torna possível frequenta-lo. (...) O usuário é o
visitante, ou melhor, o habitante que oferece sua própria
finalidade e suas próprias energias, sua própria atividade.
Porém, Scolari (2004) propõe que uma interface oferece uma visão
parcial de um todo. Na realidade, uma interface que apresenta apenas uma
visão parcial perde em resultados frente às interfaces que oferecem o conteúdo
como um todo. O espaço deve ser aproveitado, ainda que deixas simbólicas
possam ser adotadas. Se explorarmos o extracampo estamos usando uma
estratégia semiótica na construção da interface, transformando-a em invisível,
num momento em que a proposta adotada é a semio-cognitiva.
5.2. A mensagem na ponta do dedo
Ter a noticia na ponta do dedo é algo que não podíamos imaginar há
alguns anos. Nem mesmo Marshall McLuhan, com suas “premonições”, pensou
nessa possibilidade. Sua proposta era de que os meios tecnológicos seriam
extensão do nosso corpo (MCLUHAN, 2005), mas não cogitou que os
conteúdos seriam oferecidos diretamente ao nosso corpo, ou seja, que
colocaríamos as mãos nesses conteúdos, literalmente (ou quase literalmente).
A tela táctil mudou não somente os processos de transmissão e oferta
de dados, mas também a forma com que os usuários convivem com esses
dados. Seu manuseio agora está alterado para uma nova sequencia
algorítmica humana, onde os movimentos e as tarefas do corpo, e da mente, se
distinguem das tradicionais. Uma mudança que ocorreu pela ultima vez com
tamanha intensidade quando os humanos inventaram o papiro, revolucionando
aquela que era base da comunicação naquele momento: a pintura em mural.
Nesse momento, os seres humanos passaram a manusear a base
comunicacional, podendo carrega-la, inclusive.
Com a tela tátil, os usuários modificaram sua maneira de leitura do
conteúdo, definitivamente com uma navegação horizontal. A barra de rolagem
é um recurso pouco usado nestes espaços, até porque a velocidade na
recepção de informações não permite essa fragilidade cognitiva. As mudanças
de telas ocorrem de maneira lateral, e com as mãos, ou seja, o usuário põe a
mão na massa, ou no conteúdo, abandonando o já tradicional clique graças
aos processos de evolução que presenciamos nas duas últimas décadas. Essa
mudança de tela em formato horizontal não significa somente um movimento
que no audiovisual chama-se “horizontal transition”, onde as cenas são
substituídas por outras de maneira lateral. Em realidade, a navegação
horizontal é um conceito onde os conteúdos não possuem uma hierarquia e tal
leitura segue os conceitos de Canavilhas (2006) sobre a pirâmide deitada.
Porém, essa tendência já é reconhecida e adaptada pela aplicação de
construção de páginas em HTML5 Adobe Muse, que oferece uma primeira
construção do mapeamento de conteúdo em fluxogramas horizontais,
assumindo neste sentido que a hierarquia de conteúdos é algo cada vez mais
distante dos ambientes interativos, especialmente em espaços tácteis.
Imagem 29: Distribuição de conteúdos horizontais por Adobe Muse
Outro exemplo de leitura táctil horizontal é o portal de distribuição de
notícias português Niiiws19, dedicado a dispositivos Apple (Iphone, Ipad e Ipod
Touch). O espaço é um aplicativo distribuído em oito países (Portugal, Brasil,
Irlanda, França, Rússia, Estados Unidos, Grã-Bretanha e Espanha). Em
entrevista informal, realizada no mês de novembro (Covilhã, Portugal), o
idealizador do projeto, Joao Lopes Martins, justificou esse tipo de leitura como
uma preocupação com o usuário. Segundo ele, no começo do Niiiws as
pessoas reclamavam da barra de rolagem e por isso realizaram as mudanças
de arquitetura.
Imagem 30: Portal de notícias Niiiws.
19
Disponível em http://www.niiiws.com ou na Apple Store. Acesso em 21/02/2015.
Agora, com uma leitura horizontal, como os aplicativos da própria Apple,
a acessibilidade encontrada é superior e a satisfação dos usuários pode ser
confirmada pelo tempo de permanência no Niiiws por parte dos usuários.
O desafio encontrado pelos gestores do Niiiws agora é a distribuição de
conteúdos publicitários que não invadam os espaços de notícias nos processos
de navegação. Para tanto, apostam numa reprodução do conceito de revistas
impressas, ou seja, páginas inteiras que o usuário pode passar sem que afete
o conteúdo oferecido pelo portal. Entretanto, essa possibilidade está em fase
de testes e ainda não está aprovada pelos usuários ou por seus gestores.
Outra preocupação com relação ao formato de interface para conteúdos
tácteis, inclusive notícias, aborda a distribuição do conteúdo no campo visual.
Pela rapidez e agilidade desse tipo de acesso, devemos nos preocupar em
oferecer o conteúdo de maneira distribuída no campo visual, e não de maneira
extracampo, como adotam os jornais eletrônicos com barra de rolagem e
mesmo o cinema, que oferece informações semióticas extracampo, ou fora da
cena.
A distribuição no interior da tela, para conteúdos tácteis, deve ser
composta por ícones e informações visuais de fácil acesso. É importante
lembrar que, ainda que existam recursos como caneta para telas tácteis,
normalmente se acessam os dados disponíveis com os dedos, o que devemos
considerar para definir os tamanhos dos ícones.
Um modelo de fácil compreensão é a interface conversacional proposta
pela Apple, tanto na versão desktop como na versão para iPad, iPhone e Ipod
Touch. Neste caso, os ícones, ainda que proporcionalmente parecidos e com
praticamente o mesmo desenho, oferecem uma navegabilidade visual de fácil
compreensão, assim como um ajuste ao tamanho da tela.
Um modelo que pode direcionar a uma solução para navegabilidade em
dispositivos tácteis é o adotado pela reportagem transmídia Radio Semillas- la
voz de Iraca20, desenvolvida pelas jornalistas colombianas Silvia Ahumada e
Diana Melo. A proposta, construída em HTML5 da plataforma Wix.com,
apresenta ícones simples para uma navegação a partir de dispositivos móveis
e não exige barra de rolagem para visualizar esse conteúdo, exceto em
20
Disponível em http://dianamarcelamelo.wix.com/radiosemillas. Acesso em 21/02/2015.
algumas das páginas com um texto ou uma imagem mais abaixo do campo de
visão principal.
Imagem 31: Reportagem transmídia Radio Semillas – la voz de Iraca.
Essa reportagem teve seu conteúdo totalmente produzido a partir de
dois equipamentos iPad 2, desde a produção e edição dos vídeos e de áudios
até os registros fotográficos, digitação dos textos e criação e um comic
refletindo, de maneira bem humorada o cotidiano da comunidade que produz
essa rádio comunitária no interior da Colômbia.
Uma terceira preocupação refere-se aos quadrantes de leitura visual.
Adotada frequentemente por publicitários na construção visual e por diretores
de capas de jornais impressos, os quadrantes refletem os caminhos de leitura
de nossos olhos ao observar de maneira dinâmica um espaço visual com
informações diversas. Para tanto, são considerados quatro quadrantes,
divididos por duas linhas imaginarias que se cruzam, uma no sentido vertical e
outra no sentido horizontal (ver imagem 32).
Os quadrantes são identificados por números 1, 2, 3 e 4. Nosso
processo visual de leitura, nos países ocidentais, é da esquerda para a direita
(o mesmo sentido da escrita). Com isso, nosso processo cognitivo se atenta
mais aos quadrantes 1 e 4, deixando o 2 e o 3 como observação
complementar, ainda que existente. Dessa maneira, devemos contemplar os
quadrantes mais observados com as informações fundamentais, como o nome
da página, o título ou o conteúdo mais relevantes. Também devemos oferecer
uma leveza visual.
Imagem 32: quadrantes de informação visual
5.3. Experimento sobre interface
Com essas informações básicas, desenvolveu-se um conceito inicial de
interface que contasse como linguagem principal o audiovisual e seu conteúdo
em espaço multiplataforma oferecidos por ícones localizados no espaço visual
(cf imagens, 33, 34 e 35). Para tanto, foi adotado o conceito de página principal
composta por vídeos das reportagens oferecidas e um vídeo central onde uma
jornalista apresentava o conteúdo geral.
Imagem 33: Página principal da reportagem
Imagem 34: Reportagem
Imagem 35: Texto sobre a reportagem
Entretanto, percebemos, com os resultados do questionário, que era
necessária uma revisão dos conceitos adotados, assim como uma mudança
referente aos recursos disponíveis e à distribuição dos conteúdos. Para tanto,
foi eliminado esse projeto e criado um novo.
De acordo com o questionário, a primeira questão apresentada, que
tratou do tema navegação, “é possível navegar em tablets e smartphones com
conteúdo nessa interface?”, apresentou um resultado otimista: 100%
declararam sim. É evidente que a navegação foi possível pela página web ter
sido construída em HTML5, tecnologia para navegação aceita em todos os
dispositivos, pois deriva do HTML. Porém, essa informação foi importante para
testar essa tecnologia em uma diversidade de participantes como essa.
Entretanto, o resultado em si não é efetivamente relevante porque a
possibilidade de navegação não justifica uma linguagem de interface em
especial, e sim a tecnologia empregada.
A segunda questão foi mais complexa: “A distribuição de conteúdos na
tela foi eficiente?”. Esse questionamento foi complicado, pois eficiência é algo
relativo. Mas a intenção da questão foi descobrir a percepção do usuário em
sua navegação. O resultado obtido foi positivo, mas também apresentou
percepções negativas. Para 78% dos participantes a navegação foi boa e para
22% dos participantes o processo não foi eficiente. Mas no total 46% acredita
que a interface pode oferecer o conteúdo com um design mais simples e
eficiente. Tal resultado justificou uma elaboração de nova interface a partir da
primeira versão.
A terceira questão apresentada abordou a navegação em conjunto com
os conteúdos oferecidos pelas reportagens (vídeo, áudio, foto, infográfico,
mapa e texto): “É eficiente e agradável a navegação e leitura com essa
interface? O resultado foi positivo, com 90% de aprovação. A partir desse
resultado também tornou-se necessário desenvolvimento de uma nova
interface, ainda que tenha sido aprovada por uma maioria considerável.
A quarta questão questionou o tamanho dos vídeos, ou seja, o
enquadramento destes conteúdos. Para 64% o tamanho do enquadramento do
material foi bom, ainda que para 36% os vídeos foram enquadrados de maneira
muito pequena. Na realidade, essa resposta foi esperada. O tamanho das telas
dos smartphones é algo que limita a visualização do conteúdo, e os vídeos
foram produzidos para televisão, aproveitando-os para a experiência. Em
realidade, esse aproveitamento foi proposital, pois esse questionamento era
algo importante para futuras produções de conteúdos para micro telas. Como o
vídeo apresentado era limitado, isso incomodou a uma parte dos participantes,
possivelmente usuários de smartphones, e não de tablets.
A quinta e última questão desse estudo apresentou como preocupação o
tempo de navegação. Com a pergunta “qual tempo você considera viável para
uma navegação como essa?” foi possível saber o limite do usuário na
navegação por micro telas graças à sua incomodidade visual (cf questão 04). A
questão apresentou cinco opções de respostas, para escolha de uma resposta
única: mais de 30 minutos, 30 – 21 minutos, 20 – 11 minutos, 10 – 1 minuto,
menos de 1 minuto. Na realidade, pelo resultado da primeira questão (100% de
aprovação em navegação por micro telas) e da segunda questão (78%
consideraram eficiente a proposta) seria injustificável receber como resposta de
algum participante a última opção (menos de 1 minuto), ainda que fosse
possível caso algum participante não tivesse realizando o experimento com o
interesse necessário, e por isso tal questão foi apresentada. O resultado
apresentado determinou que para 40% foi possível navegar por mais que 30
minutos, seguidos de 42% aprovando 30-21 minutos e 18% preferindo navegar
por 20-11 minutos. Esse resultado foi, provavelmente, o mais relevante e
otimista de todos, porque todos consideraram possível a navegação a partir
dessa proposta, ainda que justifiquem ajustes e limitações na navegabilidade.
Com o desenvolvimento das interfaces percebeu-se que em alguns
casos o tamanho do conteúdo inviabiliza uma leitura direta. Entretanto, com a
ampliação do conteúdo a partir de comandos tácteis nesses dispositivos tal
problema pode ser desconsiderado, pois o tamanho oferecido é visível e viável.
Também percebeu-se que a tarefa de oferecer conteúdos a partir da
interface principal é condicionada a uma distribuição visual de qualidade e
navegabilidade e também pelo apoio do vídeo de apresentação do conteúdo.
Isso se justifica pela importância da eCommunication (ORIHUELA, 2004) e pelo
poder do audiovisual nos processos comunicacionais, como defende e justifica
Ricardo Bedoya e Isaac Leon Frias (2003).
A adoção do vídeo como base da interface é fortalecida pela força da
linguagem audiovisual nos processos comunicacionais (mas não exclusivo,
pois o cinema é considerado a sétima arte por seu poder de persuasão e
convencimento). Tal conteúdo provoca dinamismo e uma sensação de diálogo
entre o usuário e o conteúdo na apresentação das notícias disponíveis e
também aproveita de maneira substancial os recursos tecnológicos oferecidos
atualmente, como a tela de retina presente nos dispositivos móveis atuais.
Essa tecnologia permite uma melhor definição da imagem, e que deve ser
aproveitada pela interface e por seu conteúdo.
A interface principal desenvolvida após o experimento levou em
consideração as conclusões da primeira parte, mas também ofereceu
novidades com relação à proposta. Ainda que tenha apresentado um vídeo
como base da comunicação pela força do audiovisual no processo
comunicacional, a interface apresenta outras características cognitivas em sua
composição, além de cores simples e um recurso oferecido pelo Thinglink.
Para tanto, foi desenvolvida uma imagem de fundo que apresentou
caminhos para a navegação a partir de conceitos visuais adotados no mapa do
metrô de Madri, com cores diferentes para os caminhos e linhas retas para
mostrar as direções a seguir. Tal ideia surgiu a partir de uma apresentação
realizada por Lorenzo Vilches durante congresso em Málaga, Espanha, em
2012. Na ocasião, Vilches, chileno radicado em Barcelona, apresentou as
etapas de sua investigação a partir de um fluxograma com figuras interligadas
como se fosse o mapa do metrô da cidade, o que facilitou a visualização dos
processos da investigação. Outro conceito adotado foi a oferta de link para as
reportagens a partir de uma imagem em escala reduzida da página em
questão, e ao passar sobre a imagem abria-se uma caixa de texto com um
lide21 da matéria. Dessa maneira, o usuário tem a condição de conhecer novas
informações além da escalada22 apresentada pelo vídeo exibido no centro da
página.
Imagem 36: mapa do metrô de Madri.
Com esse conceito visual, a partir de um fundo branco, a interface
principal do experimento ofereceu uma leveza ao mesmo tempo em que
provocou uma recordação de semelhança relacionada à identificação de
21
Lide é um resumo da matéria que contém as principais informações do acontecimento. A
construção do lide se dá a partir de respostas às seis perguntas básicas do jornalismo: o que, quem,
quando, como, onde e por que.
22
Escalada é o termo adotado pelo telejornalismo brasileiro para definir o momento em que o
jornalista apresenta os conteúdos das principais notícias do telejornal. A escalada ocorre na abertura do
telejornal.
caminhos ágeis e rápidos para os destinos esperados. Essa é a característica
do metrô, e essa comunicação é semelhante em mapas de outros metrôs de
importantes cidades do mundo, como Nova Iorque, São Paulo, Tóquio,
Londres, Paris ou Cidade do México, cada um com a sua densidade de
caminhos, mas com o mesmo conceito visual.
Na interface proposta, a oferta das redes sociais logo acima
proporcionou uma fácil visualização destes espaços, o que facilitou a escolha
por estes caminhos, fator fundamental numa comunicação transmídia. Junto a
essa informação, no lado esquerdo superior da tela (de maneira discreta), no
primeiro quadrante, foi apresentado o nome do experimento, e no topo do
segundo quadrante links para as páginas internas do experimento, com
informações relacionadas aos participantes e aos apoios, além de um resumo
do estudo para fins de esclarecimentos futuros. O fundo branco apresentou
uma leveza visual defendida por diversos estudiosos e profissionais do design
como a cor mais sofisticada que existe, especialmente por sua neutralidade
estética.
A escalada apresentada no centro da interface fortalece o conceito do
poder do vídeo na comunicação. Entretanto, um conteúdo audiovisual
apresentado de maneira isolada não consegue obter o mesmo resultado
cognitivo na transmissão de notícias com diversidade de linguagens, ainda que
o mesmo ofereça outros recursos, e por isso na televisão é comum presenciar
conteúdos
intertextuais
(KINDER,
1991).
Além
disso,
a
proposta
multiplataforma tem sua justificativa apoiada em palavras do teórico Bill Nichols
(1997, p.33), estudioso sobre documentários. Para o autor, “as imagens podem
fascinar, mas também distraem. A força produtiva e interpretativa reside nas
palavras”. Por essa razão, além de ser uma base fundamental na construção
da narrativa transmídia, a multiplataforma é fundamental nesta proposta,
especialmente no que diz respeito á construção da interface, por se tratar do
principal vínculo entre o usuário e o conteúdo. A apresentação do conteúdo
pelo jornalista através de um vídeo amplia a relação cognitiva com o usuário,
que é convidado a navegar pelos ícones apresentados na interface.
Porém, é importante levar em consideração métodos propostos para a
elaboração dessas interfaces, pois a fronteira entre uma interface eficaz e um
embaralhado de informações é tênue e, em alguns casos, imperceptível
5.4. Métodos de produção
Com o desenvolvimento do experimento, alguns pontos sobre interface
foram descobertos e/ou confirmados. O primeiro ponto – a utilização da
tecnologia móvel – foi confirmado e aprovado ao final deste estudo. Ainda que
ofereça limitações, pode-se defender que ao final as vantagens superam os
problemas obtidos com a opção por esse tipo de tecnologia, seja no âmbito do
preço do equipamento, seja na praticidade ou mesmo na qualidade final.
Para compreendermos os métodos de exibição indicados à produção de
documentários transmídia é fundamental entender que toda produção
audiovisual passa por três etapas, basicamente: pré-produção, produção e pósprodução. A existência das três etapas são fundamentalmente essenciais no
documentário transmídia, inclusive mais essenciais que numa produção
audiovisual convencional.
Na etapa de pré-produção, tornou-se claro que o papel do argumento
ganha potencial importância, pois nesse momento será constada a viabilidade
de uma produção transmídia frente ao conteúdo que poderá ser extraído da
proposta. Para tanto, algumas perguntas devem ser respondidas antes de
finalizar o argumento:
-
O tema oferece conteúdo multiplataforma?
-
Estes conteúdos podem ser separados e “consumidos” (TOFLER, 1980)
de maneira independente?
-
É possível oferecer uma maioria deste conteúdo em plataforma
acessada on demand?
A partir destas perguntas, desenvolve-se o argumento, considerado o
primeiro passo, e um dos mais importantes, no processo de produção de uma
obra audiovisual. Porém, o argumento é um deles. Em seguida, deve-se pensar
no roteiro, que neste caso deve seguir a proposta de fluxograma circular
rizomática (RENÓ, 2011), onde a visualização dos conteúdos pode oferecer
melhor
análise
de
navegação
entre
os
mesmos,
assim
como
sua
independência tanto na leitura como na ordenação. Em outras palavras, o
conteúdo deve permitir ao usuário decidir se consome e quando consome tal
fragmento da narrativa. A partir do desenvolvimento do roteiro, faz-se o
agendamento das etapas de produção, não somente das imagens, mas
também de outros tipos de conteúdo oferecidos pelo documentário transmídia.
A produção é uma segunda etapa fundamental no campo do audiovisual,
e o documentário transmídia segue essa mesma condição. Entretanto, quando
se produz a partir de dispositivos móveis, outros cuidados devem ser tomados,
especialmente no que diz respeito à capacidade de captação de luz destes
dispositivos, assim como uma limitação de captação de áudio. Outro tema
fundamental refere-se à estética a ser adotada. Para tanto, deve-se considerar
que uma imagem aproximada (close up ou zoom in) deve ser obtida pela
aproximação ou movimentação física da câmera, não dependendo de recursos
digitais, já que o dispositivo possui qualidade limitada para isso. Também devese considerar a leveza do equipamento, o que provoca certo desequilíbrio do
mesmo. Por essa razão, quando a proposta é contemplada por câmera
estática, é fundamental adotar o uso do tripé.
Imagem 37: Produção de documentários a partir de dispositivos móveis.
A partir da produção das imagens, com o devido cuidado com o espaço
na memória dos equipamentos, inicia-se a pós-produção com a decupagem do
material. No caso do documentário transmídia, a decupagem é ainda mais
importante, pois oferece a possibilidade de conhecer o conteúdo captado e, a
partir dele, pensar em uma construção multiplataforma. Neste momento,
também é fundamental pensar na interface a ser adotada, de modo que
contemple todo o conteúdo definido no roteiro rizomático.
Para isso, é proposto um método, não único, mas uma possibilidade,
pois parte das características dos processos transmídia é a liberdade. Para
tanto, foram considerados os resultados práticos e sua composição com os
conceitos teóricos estudados e selecionados a partir das poucas referências
existentes para explicar/compreender a relação entre interface, conteúdo e
usuário em outros âmbitos que ultrapassam o cenário de ambientes tácteis.
Para elaborar uma interface é fundamental levar em conta algumas
informações que servem de orientação:
- Audiência da obra;
- Distribuição do conteúdo por hierarquia de interesse;
- Recordações de semelhança;
- Estrutura de apresentação;
- Processo semio-cognitivo;
- Diálogo por redes sociais;
- Possibilidades tecnológicas.
O primeiro quesito, audiência da obra, refere-se ao público esperado
para a leitura da publicação. A partir dessa definição é possível construir os
parâmetros estéticos que interessam ao público em questão. Por exemplo, se a
obra é direcionada a jovens de 15 a 18 anos deve-se buscar ícones e uma
linguagem de cores e formas que sejam apropriados ao grupo. Esse fator é
fundamental, pois pode proporcionar uma mais expressiva atração visual dos
usuários em um primeiro momento da comunicação. Além disso, seleciona os
usuários e mantém a atenção dos mesmos de maneira constante, pois o
espaço virtual no qual eles “ingressaram" é adequado.
O segundo tópico, também fundamental para a definição de parâmetros
iniciais, distribuição das notícias por hierarquia de interesse, deve ser realizado
no momento da concepção do documentário. Para tanto, é fundamental
visualizar o conteúdo a partir da construção de um fluxograma que apresente
conteúdos de acordo com os quadrantes de leitura e a própria interface em si.
Para tanto, deve-se considerar que o primeiro e o quarto quadrantes recebem
uma maior atenção do usuário por se tratar de uma leitura ocidental. Caso o
leitor seja oriental ou árabe, onde os caminhos de leitura seguem outro fluxo, é
importante inverter e/ou adaptar esse fluxograma. Para tanto, propomos que
seja considerado o primeiro quadrante como o espaço do mais importante e o
quarto quadrante como o espaço para propor o desfecho do conteúdo com algo
ameno, ainda que igualmente interessante. O modelo da construção do
conteúdo de acordo com a hierarquia por quadrantes é apresentado da
seguinte maneira:
Imagem 38: Modelo de interface com estudo de quadrante.
O terceiro ponto que devemos levar em consideração na construção de
uma interface é o que nos faz sentir uma identidade com o espaço ou o
contexto do conteúdo. Para tanto, devemos lançar mão ao que Carnap (2003)
nos propõe – recordações de semelhança. Segundo essa ideia, adaptada ao
ambiente de produção de interfaces, é importante buscar informações que nos
ofereçam uma sensação de que “já estivemos naquele lugar”, ou que “já
saboreamos tais informações”. Isso pode ser obtido através de uma definição
de ícones fundamentais, como, por exemplo, a reportagem 04, que apresenta
desenhos astecas e uma diversidade de cores, ou como acontece na
reportagem 03, onde o fundo negro e uma distribuição clean dos conteúdos
nos remete ao mundo da tatuagem e das transformações físicas. Por fim,
podemos sentir essas recordações de semelhança na interface da reportagem
01, onde, além de um semáforo, há uma faixa de pedestre para que tenhamos
a sensação do espaço onde estamos “entrando”, ou seja, sobre o tema que
será abordado no documentário. Tais conceitos vão contra algumas definições
estéticas, que propõem uma série de cores e formas ideais para ambientes
específicos. Definitivamente, tudo isso depende da recordação que queremos
proporcionar.
Parece algo sem importância, mas a preocupação com a “estrutura da
apresentação” do conteúdo é fundamental na obtenção de bons resultados a
partir da interface. Para tanto, é fundamental definir onde colocar os botões de
acesso aos diversos conteúdos disponíveis na plataforma. Isso se define a
partir da importância de cada conteúdo na construção da narrativa, assim como
se faz na distribuição das notícias por hierarquia de interesse. A diferença é
que tal definição se faz dentro do documentário, e não em um conceito amplo
entre reportagens. Ainda que não seja possível obrigar a leitura de todos os
conteúdos por parte dos usuários (e nem recomendável), é possível fortalecer
a leitura de seus conteúdos. Para tanto, é importante definir uma sequência
lógica de distribuição de seu conteúdo a partir de uma possível leitura. Como
define Lev Manovich (2005), para construirmos uma estrutura navegável é
fundamental que tenhamos em mente a estrutura mental de quem lê, ou seja,
devemos pensar como pensariam os usuários, neste caso na escolha de uma
sequência de conteúdos para o processo de consumo da informação.
Apesar de ser um dos últimos na construção de fatores fundamentais
para a definição de uma interface eficaz, levar em consideração o processo
semio-cognitivo é tão importante quanto os outros fatores. Ele deve ser
avaliado ao final porque antes seria inviável pela ordem dos momentos da
construção. Para que seja avaliado o processo semio-cognitivo é importante ter
condições de visualizar o conteúdo como um todo. Dessa maneira, é possível
perceber se há processos de informação imperceptíveis, mas que ao mesmo
tempo sejam recebidos com ciência por parte do usuário. Como apresentado
anteriormente, uma interface semio-cognitiva oferece uma relação entre o
conteúdo e o usuário semelhante à relação entre o ser humano e o oxigênio:
não pode ser visto, mas sabe-se que ele está no ar. Essa proposta de interface
possibilita, segundo Scolari (2004), uma eficaz construção comunicacional
entre esses dois “corpos comunicacionais”: o usuário e o conteúdo. Ainda que
seja um processo subjetivo de análise, pois leva em consideração a relação do
construtor da interface com seu produto final, pode possibilitar resultados
confiáveis se o autor busca uma sinceridade crítica em sua avaliação.
Por fim, para construir um documentário com interface eficaz e que
possa alcançar seus objetivos cognitivos, é importante levar em consideração
as
reais
possibilidades
tecnológicas
existentes.
Ainda
que
pareça
desnecessário e ao mesmo tempo incoerente apresentar tal importância em um
estudo que tem como principio a construção da comunicação a partir da
narrativa, e não da tecnologia, é fundamental considerar o que se pode e o que
não se pode fazer com a tecnologia disponível. Afinal, ainda que a linguagem
seja o fator mais importante em níveis hierárquicos, a tecnologia é a que
possibilita o consumo dessa linguagem pelos dispositivos móveis. Dessa
maneira, torna-se fundamental abandonar a tecnologia Flash, já que uma
importante parcela dos dispositivos utilizados para consumir esse conteúdo não
é compatível com essa linguagem de programação. Tal abandono também é
justificado pela instabilidade de programação e o demorado peso dos arquivos
disponibilizados em construções por tecnologia Flash.
Com esses parâmetros, percebe-se que é viável desenvolver interfaces
interativas para o consumo de notícias a partir de dispositivos tácteis e, assim,
alimentar uma tendência crescente na esfera da comunicação. Uma tendência
apresentada de maneira eficaz por Levinson (2012) e fortalecida por outros
autores contemporâneos, como Aguado (2013) e Scolari (2013).
O segundo procedimento fundamental é a finalização e a montagem do
conteúdo. Na finalização, pode-se utilizar tanto os equipamentos móveis como
computadores. Neste estudo, utilizou-se dos dois dispositivos, ainda que a
preferencia seja destacadamente o computador. Entretanto, é possível produzir
conteúdos de extrema qualidade quando adotados dispositivos móveis para
estes momentos também, como ocorreu na produção do documentário Galegoportuguês (2013).
5.5. Um novo documentário
No processo final do estudo, foram desenvolvidos dois documentários
transmídia com a utilização de iPod Touch a partir dos conceitos aqui
apontados,
O primeiro documentário produzido, Rolling Stones in my life
23
(2015),
apresenta a relação de fãs com a banda cinquentenária. Para tanto, foram
ouvidos admiradores dos Rolling Stones e músicos dedicados a reproduzir as
composições dos roqueiros ingleses. Porém, o mais importante sobre o
documentário foi a experimentação de se produzir no formato transmídia a
partir de dispositivos móveis – no caso deste estudo, iPod e tablet.
Com um roteiro originalmente escrito para uma obra linear, o
documentário foi adaptado para o formato multiplataforma visualmente
navegável produzido em Wix, numa conta gratuita. Entretanto, a primeira
dificuldade foi a de conviver com as limitações tecnológicas do dispositivo
móvel para a captação de imagens em ambientes fechados e com luz artificial,
frequentes no vídeo. Outra dificuldade foi a obtenção de fotografias dos Rolling
Stones para colocar na fototeca, assim como fãs que quisessem produzir
conteúdos a respeito para enviar ao campo de contribuições presente na
página.
Com a adaptação do roteiro, começaram as produções da obra. Para
isso, o ponto de partida foi a construção de uma rede de comunicação no
Facebook, onde foram descobertos diversos fãs que poderiam servir de fonte.
A partir disso, foram agendadas as gravações com os participantes.
Simultaneamente, foi produzido um texto sobre a temática do documentário. A
produção contou com a participação direta do estudante de Jornalismo João
Victor Belline, bolsista do projeto de pesquisa, que aprendeu a construir roteiro,
operar o iPod e editar tanto a página Wix como o vídeo no programa de edição
Adobe Premiere, instalado em um computador do projeto. O estudante também
sugeriu diversas estratégias de construção de rede de contatos e propôs que
um dos conteúdos oferecidos deveria ser externo ao projeto (com o comando
target=blank, para proporcionar a abertura de uma nova página e evitar o
abandono da mesma), direcionado a uma página de cifras musicais sobre a
banda.
A interface criada foi simples e seguiu cores relacionadas à banda e ao
rock (vermelho, preto, branco, cf. Imagem 39). Porém, decidiu-se fugir da boca,
símbolo clichê da banda.
23
Disponível em http://mobilabresearch.wix.com/stonesinmylife. Acessado em 10/03/2015.
Imagem 39: Interface documentário Rolling Stones in my life (2015).
A produção encontrou uma dificuldade expressiva, mas solucionou-se
com a prática: a firmeza na operação do iPod, por sua leveza. Entretanto,
outros problemas previstos não foram registrados, como a falta de iluminação
na gravação, já que tais dispositivos possuem excelente qualidade de captação
de luz para evitar exatamente problemas desta natureza.
A construção do site foi simples, tendo em vista as possibilidades que o
Wix oferece. Porém, a montagem da página foi realizada em um computador
convencional, já que tal atividade seria praticamente impossível em um tablet e
totalmente impossível em um iPod, graças à tecnologia oferecida. A página é
responsiva e pode ser acessada a partir de qualquer dispositivo móvel.
Imagem 40: Interface responsiva acessada desde um iPhone.
Para o documentário, foram pensadas em páginas diversas que
oferecessem conteúdos navegáveis independentes entre si, mas relacionados,
como deve ser uma narrativa transmídia (RENÓ e FLORES, 2012). Para isso,
foram selecionados e/ou produzidos esses conteúdos de acordo com a
linguagem proposta e o público de interesse. Isso é fundamental porque um
dos pontos a ser considerado na construção da interface (cf capítulo 5.2) é a
audiência da obra.
A interface, ainda que esteja apoiada ao modelo de visualização
navegável, também oferece características semelhantes ao modelo arbóreo,
proposto por Manovich (2005) e também uma diversidade de conteúdos
encontrada em páginas web convencionais. Dessa maneira, o documentário
pode ser navegado de maneira simples e ao mesmo tempo completa.
Imagem 41: Interfaces simples do Rolling Stones in my life (2015).
Outra importante iniciativa do projeto foi a criação de contas em meios
sociais, especialmente o Facebook, popular no momento de execução da
pesquisa. Para tanto, buscou-se manter uma identidade visual com o projeto,
ainda que de maneira independente. A audiência da página proporcionou uma
crescente acessibilidade à página principal do documentário.
Imagem 42: Página do documentário Rolling Stones in my life (2015) no Facebook.
Com os resultados alcançados, percebeu-se a real possibilidade de se
produzir obras documentais em espaços multiplataforma com o uso de
dispositivos móveis. Entretanto, a experiência era pequena e exigia um desafio
maior. Para tanto, foi desenvolvido o projeto do documentário transmídia sobre
o Centrinho, hospital da Universidade de São Paulo localizado em Bauru – SP
e dedicado ao tratamento de diversas patologias relacionadas às anomalias
craniofaciais, considerado uma referência internacional no tema, quando foram
contatados representantes do hospital e o projeto foi apresentado. Intitulado
Centrinho – autonomia para a vida24, o documentário teve um espaço
construído no Wix, também em plataforma e pacote gratuitos, além de
responsivos.
A escolha do tema justificou-se pelo interesse em buscar uma nova
linguagem,
um
novo
conteúdo
(menos
vanguardista,
jovial)
para
a
experimentação não somente da técnica, mas também da linguagem
transmídia em sua confecção. Com a aprovação, começou-se a construção do
roteiro rizomático para, em seguida, pensar-se no resto do conteúdo.
Para a captação das imagens, adotou-se o sistema de duas câmeras,
sendo uma fixa em um tripé e outra móvel, acompanhando a dinâmica das
24
Disponível em http://www.mobilabresearch.wix.com/centrinho. Acessado em 10/05/2015.
entrevistas. Também utilizou-se a tecnologia Time Lapse25 para um efeito
inicial do vídeo. A interface fundamentou-se num conceito leve, com as cores
branca e azul, encontradas na logomarca do hospital, e adotou-se o vídeo
como linguagem principal, logo na primeira página, com XXX minutos de
duração e produzido com enquadramentos fechados. Isso é justificado por
estudos anteriores, especialmente sobre Jornalismo Transmídia (RENÓ e
FLORES, 2012), quando conteúdos jornalísticos audiovisuais foram produzidos
por dispositivos móveis durante 12 meses, sendo estudados em seguida.
Imagem 43: Interface do documentário Centrinho – autonomia para a vida 2015).
A preocupação com a construção de um conteúdo próprio é fundamental
quando se pensa em um documentário transmídia. Porém, mais importante que
uma produção completamente autoral é um conteúdo correto, e por isso foram
criados links para a página oficial do hospital, pois assim seriam respeitadas e
garantidas as informações científicas ali presentes. Os links saíram diretamente
da página principal, direcionando a leitura ao endereço oficial do Centrinho
(com o comando target=blank, possibilitando o retorno à página principal). O
mesmo se repetiu com links diretos à página principal e às publicações
realizadas pelo hospital.
25
Time lapse é o efeito obtido através da aceleração intensa de imagens captadas.
Imagem 44: Página oficial do Centrinho.
Considerou-se fundamental a criação de uma página de serviços, já que
o documentário tinha esse fim desde sua concepção. Para tanto, montou-se
uma página com o auxílio do aplicativo Google Maps, tendo como endereço
referência o Centrinho.
Ao lado do mapa, apresentou-se uma relação de telefones para contato,
fortalecendo a condição de serviços da página. Seguramente, essa página terá
uma função fundamental na existência da obra, não somente no campo do
conteúdo, mas também na participação e navegação.
Imagem 45: Aplicativo Google Maps na página do documentário.
Por fim, construiu-se uma página explicando o processo de surgimento
do projeto, explicando a parceria existente entre as duas instituições de ensino
na produção do documentário. Dessa maneira, também foi possível agradecer
aos envolvidos nos bastidores da obra, assim como definir os objetivos que
acompanharam a produção desde o princípio.
Imagem 46: Página com informações sobre o projeto.
Com essa obra, percebe-se uma diversidade do documentário
transmídia no que diz respeito à justificativa de existência. Um documentário
transmídia, com maior potencial que o documentário convencional, pode
assumir o status de formador de conhecimento, de prestador de serviços, e não
simplesmente o de entretenimento. Obviamente, algumas dificuldades
estiveram presentes na produção, especialmente no que diz respeito à
concepção dos projetos. Entretanto, todas elas foram superadas e os
resultados obtidos atendem ao esperado no princípio do desafio.
Conclusões
Ainda que este estudo ofereça um modelo de interface interativa para
conteúdos jornalísticos com linguagem transmídia para dispositivos móveis, tal
estudo sofrerá em poucos anos uma necessidade de mudanças. Entretanto,
nos pontos conceituais, como a definição de interface e a proposta
apresentada, que leva em consideração alguns conceitos desenvolvidos por
teóricos de diversos campos, como Carnap, Scolari e Manovich, não sofrerão
com o poder do tempo. Tais conceitos servem de parâmetros para a
construção e a interpretação do que vem a ser interface e qual o seu papel nos
processos comunicacionais mediados. Outro ponto que seguramente não
sofrerá mudanças com o passar do tempo é o esclarecimento com relação às
diferenças entre a estratégia cross-media e a narrativa transmídia, comum no
campo da comunicação, ainda que equivocada.
Interface é, seguramente, a alma dos processos comunicacionais
mediados, seja por ambientes digitais, seja por ambientes físicos. A relação
existente entre o conteúdo e o usuário é obtida a partir da interface e de seu
papel no processo comunicacional. Um livro só alcança o seu papel (o de
passar conhecimento ao leitor) graças à interface existente. Uma interface
desenvolvida há séculos, mas que segue com uma sequência de letras
combinadas para a formação de palavras, por sua vez combinadas na
construção de frases, parágrafos e o conteúdo em si. Da mesma maneira, a
proposta apresentada não sofrerá mudanças conceituais com o passar do
tempo.
Esse estudo chegou a diversas conclusões, fundamentais para se
pensar na construção de processos mediados, neste caso por dispositivos
móveis e de telas tácteis. Percebeu-se que o poder do táctil é mais forte do que
se imaginava antes da investigação. O ato de “colocar as mãos no conteúdo”
tem seu poder cognitivo expressivo, capaz de envolver o usuário e de oferecer
a ele a sensação táctil, a experiência material à qual estamos acostumados.
No campo do documentário, ainda que seja apenas um primeiro estudo
na tentativa de definir alguns modelos de produção de documentários
transmídia, esta investigação não possui uma conclusão definitiva, e nem tem
essa pretensão. A intenção ao definir alguns modelos é somente para
exemplificar como podem ser justificados tais modelos em futuras produções.
A falta de definição de formatos é uma máxima quando se pensa em
narrativa transmídia. Afinal, a criatividade é uma marca nesta linguagem. .Além
disso, o gênero documentário é uma obra artística, ou seja, não há como definir
formatos limitados de produção.
Considero que essas definições de modelos podem auxiliar a
compreender que um documentário transmídia não exige uma circulação
exclusivamente por ambientes digitais, pois trata-se de uma linguagem, uma
maneira de contar a história. Exemplo disso é o documentário Morreu o Demo,
acabouse a peseta, que pretende finalizar a série de extensões narrativas com
“textos” em ambientes digitais. Entretanto, todos os outros fragmentos
oferecidos pela obra estão em plataforma analógica, como livro, DVD (ainda
que seja registrada de forma digital, essa plataforma é considerada neste texto
como analógica por materializar-se em um disco).
Outra consideração refere-se às limitações de interface e de narrativas
existentes na obra Calles perdidas, que oferece uma estrutura definida como
multimídia pelo próprio autor, mas que ao final de sua estrutura revelam uma
narrativa transmídia que contempla conteúdos jornalísticos em sua navegação.
Ainda que faltem links para redes sociais, essa produção (desenvolvida
também em caráter experimental) aproxima-se do ideal transmídia.
Por fim, dentro dos parâmetros compreendidos para a narrativa
transmídia, considero que o ideal em modelo navegável e expansível para a
construção de um discurso documental é proposto pela obra Galego-português,
ainda que a plataforma apresente problemas tecnológicos por se tratar de
aplicativos em modalidade gratuita.
Um exemplo interessante a ser seguido é o documentário Hollow, que
pode modificar os horizontes do documentário transmídia. Ele materializa todos
os conceitos já definidos por pesquisadores sobre o tema, fazendo com que
essas ideias sejam testadas e, neste caso, aprovadas com êxito. A narrativa
possui uma navegação suave do começo ao final e a busca por novidades
dentro da tela (navegação no interior da cena) é uma provocação constante,
ainda que sutil.
A verdade foi revelada durante toda a obra, proporcionando ao usuário
conclusões reais sobre os temas abordados. Ao mesmo tempo, a narrativa
oferece traços de gamificação em sua navegação, tornando a experiência
lúdica e não-linear. Isso é o que Manovich (2005) indica como fundamental
para um processo interativo. Tal proposta também é apresentada por Lorenzo
Vilches (2003), para quem a migração digital deve ser acompanhada de
processos participativos.
Um valor destacado do documentário é a qualidade estética. Ainda que
o mesmo tenha sido produzido por uma equipe reduzida, a qualidade artística
apresentada é elevada. Além disso, a mistura e a diversidade de conteúdos
complementares, mas independentes, merece comentário. As transições e os
movimentos internos realizados a partir de camadas com fotografias recortadas
proporciona à obra um dinamismo muito além do que poderia obter-se com a
exclusiva adoção de imagens em movimento. Essa movimentação sai da
normalidade, o que provoca atenção do usuário no momento em que assiste à
obra.
Algo novo também apresentado no documentário foi o convite à leitura
externa, a partir de hashtags sobre a forte tempestade. Ainda que fosse um
acontecimento antigo, esse convite pode ter gerado interesse em alguns
usuários do documentário. Constatou-se, na pesquisa, que tal navegação é
possível e interessante.
Uma inovação apresentado pelo documentário Hollow foi o convite à
participação concreta do usuário na construção da história. Esse processo
construtivo não se limita à definição do roteiro de leitura (RENÓ, 2011), e sim à
construção de um conteúdo a partir da retroalimentação. Trata-se de um
produto do género documentário efetivamente participante da nova ecologia
dos meios, onde o “new new citizen” (LEVINSON, 2012) busca uma
participação constante nos processos midiáticos.
Por fim, devemos observar o valor do documentário pela construção do
roteiro. Lev Manovich (2013; 2005) aponta para a importância em definir
algoritmos de navegação em obras interativas, e percebemos a existência de
funções algorítmicas na obra. Vale ressaltar que algoritmo (RENÓ, 2011) é um
conjunto de atividades finitas e ou infinitas criadas para realizar uma tarefa, não
limitadas a comandos binários, ainda que em Hollow percebemos vários
comandos existentes. Sobre essas atividades pré-definidas no roteiro, Vicente
Gosciola (2008) compartilha com Denis Renó (2011) ao afirmar que tal
planejamento é fundamental para que a produção tenha êxito. Esse plano de
navegação
deve
ser
desenvolvido
da
melhor
maneira
possível,
preferencialmente visualizável por fluxogramas (RENÓ, 2011).
Hollow é uma contribuição importante não somente para o documentário
em si, mas também para a produção de conteúdos construídos para narrativas
de realidade apoiados ao transmedia storytelling. Esse tipo de construção
narrativa é criticado por correntes conservadoras da comunicação, pois
questiona-se o fim da autoria. Para tanto, Renó (2011) aponta para a existência
de uma nova relação entre autor e público: a coautoria.
Entre os experimentos desenvolvidos, percebo que ainda existe uma
certa dificuldade tecnológica para a formatação dos mesmos. Entretanto, esse
problema está cada vez mais despercebidos, tendo em vista as possibilidades
existentes. O mesmo ocorre no campo da produção a partir de dispositivos
móveis. Os dispositivos adotados na produção dos experimentos (iPod Touch)
demonstraram qualidade tecnológica e vantajosa mobilidade, especialmente
quando produzidas imagens em situações invasivas, como no documentário
Centrinho – autonomia para a vida. Já no documentário Rolling Stones in my
life, o que tornou-se visível foi a facilidade em se produzir mesmo em
ambientes com pouca iluminação, fator fundamental para um bom resultado
audiovisual. Também pode-se destacar o surgimento de uma cultura sobre
documentários transmídia na instituição onde a pesquisa foi desenvolvida, não
somente entre os docentes (como resultado da repercussão sobre o estudo),
mas também entre os estudantes, que passaram a experimentar o formato em
suas atividades relacionadas ao curso e também compreenderam a
movimentação que se amplia no campo midiático, especialmente no que diz
respeito à construção de espaços participativos e expansíveis. Com isso,
podemos considerar que os resultados fundamentais referentes à pesquisa
foram amplamente alcançados, e de maneira exitosa.
Porém, o fundamental nessa conclusão é entender que o documentário
transmídia, assim como obras do gênero documentário por linguagem
tradicional, não consegue ajustar-se a um único modelo, como justifica Bill
Nichols (1997). A mescla entre linguagens e formatos é uma marca do
documentário, segundo o autor, e se justifica pela liberdade da criação artística.
Dessa maneira, convido novos pesquisadores e produtores a arriscarem nessa
realidade que está apenas começando e que tem muito a expandir no campo
da produção audiovisual que oferece ao expectador discursos navegáveis de
realidade.
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