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Coluna

Falta empatia

por Flávia Oliveira

No Rio, jovens são suspeitos de crime pelo lugar onde moram, pelas roupas que vestem, pelo sanduíche que não levam

Se não existe amor em São Paulo (a benção, Criolo), no Rio acabou a empatia. As sete letras deram o tom numa das reuniões do Plano Estratégico 2017-2020, aquele projeto em que, de quebra, a prefeitura propõe pensarmos a cidade dita maravilhosa nos próximos 50 anos. Segunda-feira passada, especialistas, autoridades, líderes empresariais e ativistas sociais debateram educação básica, civilidade, diversidade. A fratura exposta da cidade partida veio à tona. Foram muitas intervenções chamando a atenção para a intolerância epidêmica e evocando a empatia como ingrediente essencial para a materialização da tal “Cidade para todos”, slogan utópico que permeou as conversas.

Os oradores acertaram no diagnóstico, mas erraram no prazo. Não é caso de futuro. A empatia é desejável para ontem. Se dúvida havia, estão aí o governador Luiz Fernando Pezão, o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, e a Polícia Militar a ratificar a urgência. Domingo passado, outro de calorão no inverno carioca, 14 adolescentes pretos e um branco-quase-preto-de-tão-pobre (a benção também, Caetano Veloso e Gilberto Gil) foram retirados de um ônibus por policiais e levados para abrigos, informou o “Extra”. Não tinham armas nem drogas. Moradores do subúrbio, foram impedidos de chegar à Praia de Copacabana. Acabaram barrados do lazer que moldou a fama de cidade democrática do Rio. A Defensoria Pública desconfia de ato de privação de liberdade sem flagrante.

A repressão a suburbanos e favelados não é novidade no município. Ano sim, ano também, ao primeiro sinal de verão, pipoca o medo de arrastão e as autoridades propõem “higienizar” os coletivos que vêm da Zona Norte. O governador apoiou a polícia: “Quantos arrastões foram praticados por alguns desses menores?”. O secretário de Segurança arrematou: “Você tem um ônibus de adolescentes que não pagaram a passagem, que não tem o que comer, com fome, e você acha que eles irão voltar como para casa?”.

O par de indagações de titulares dos dois cargos mais importantes do governo estadual sugere que, no Rio, já está em operação a Unidade de Pré-Crime. O termo, para os recém-chegados, foi cunhado por Philip K. Dick no conto de ficção científica “Minority Report”, transformado em filme por Steven Spielberg, em 2002. Designa a área policial capaz de, com a ajuda de paranormais, capturar assassinos segundos antes do crime. A trama se passa em 2054. A polícia fluminense antecipou-a em quase quatro décadas. Na vida real.

Ironias à parte, o que tem ficado claro nas ações do setor público é que, no Rio, jovens são suspeitos de crime pelo lugar onde moram, pelo ônibus em que viajam, pelas roupas que vestem, pelo sanduíche que não levam, pelo Bilhete Único que não têm. É preconceito. E falta de empatia, a incapacidade de se pôr no lugar do outro e experimentar seus sentimentos.

Da mitologia iorubá, o historiador Luiz Antonio Simas sacou duas narrativas que tratam do tema. Numa delas, Ogum divide a fortuna com a vendedora de acaçá que alimentara o exército do orixá com toda a comida que tinha. Ao voltar de uma guerra com butim valioso, Ogum entrega tudo à mulher. Ele fica pobre, ela enriquece. Em outra, os orixás coroam com pompas o mesmo Ogum. Ele recusa a coroa e vai para a floresta caçar. Quando volta, com roupas humildes e manchadas, é desprezado. Ele, então, retorna ao isolamento e passa a desconfiar dos que o julgaram pela aparência. Que fim escolheremos?

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